O comércio de cativos africanos no Brasil ocorreu por um período bastante longo, cuja estimativa é de que tenha superado a marca de quatro séculos. A impossibilidade de se mensurar formalmente tamanha indignidade humana ocorre em função da regionalização do tráfico em um país de dimensões continentais; e também em função da impossibilidade de se contabilizar com precisão o número de cativos importados, haja vista as subnotações, as cargas provenientes do contrabando, e a não preservação de boa parte dos registros alfandegários.
O mercado de escravos na cidade do Rio de Janeiro tinha alcance local e regional, pois atendia à província do Rio de Janeiro e às províncias de Minas Gerais e São Paulo (Fragoso Reference Fragoso, João1992). Era formado por associações entre poderosos comerciantes de “grosso trato”, que comandavam os negócios negreiros internacionalmente, desde o embarque nos portos da África, passando pelas operações de venda e distribuição, a partir do porto do Rio de Janeiro, e por pequenos mercadores varejistas submetidos economicamente aos primeiros através do controle do crédito, e em função de poderes políticos, sociais e comerciais (Florentino Reference Florentino1995).
Na cidade do Rio de Janeiro, no antigo bairro do Valongo (atuais bairros da Gamboa e Saúde; Figura 1) encontrava-se instalado o complexo escravista conhecido localmente por Mercado de Escravos do Valongo, dotado de lazareto, cemitério e lojas para venda de cativos (Pereira Reference Pereira, Júlio2007). Com o advento da chegada da Corte Portuguesa em 1808, o mercado do Valongo se torna “grande centro redistribuidor de escravos para a Região Sudeste do Brasil” (Soares Reference Carlos2007:40), principalmente nas duas primeiras décadas do século dezenove. No Brasil, estima-se que em 1800 já havia quase um milhão de escravos, dos quais 10% estavam concentrados nas zonas urbanas, e o restante trabalhava na agricultura, pesca, transporte e mineração (Luna e Klein Reference Luna and Klein2010). No início do século dezenove, em face da necessidade de abastecimento do “braço escravo” para o estabelecimento da Corte Joanina e, posteriormente, Imperial, o número de cativos do sexo masculino em muito superou o de mulheres e crianças, criando novas dinâmicas na vida escrava e na prática mercadológica (Góes Reference Góes, José1993).
Com a proibição do tráfico de escravos na década de 30 do século dezenove, garantida por acordo bilateral entre a Grã-Bretanha e o Império do Brasil, o comércio retalhista de escravos do Rio de Janeiro se reorganizou em escritórios e casas de negócios variados, levando à desarticulação do complexo do Valongo. Nesse contexto, foram realizados negócios sorrateiros através de transações comerciais rentáveis que aceitavam dinheiro, escravos, mercadorias e demais objetos de valor, visando burlar a proibição estatal (Soares Reference Carlos2007:43-44). No entanto, não foi apenas o complexo que sentiu as mudanças com o processo de ilegalidade, os próprios comerciantes de escravos, que antes eram vistos como exemplo de empreendedorismo e sucesso, foram então equiparados aos gananciosos piratas, uma vez que passaram a ser de fato contrabandistas. Contribuiu para esta situação a inércia do Estado, o qual não estava preparado para ações de repressão ao “infame comércio”, tão lucrativo e amplamente espalhado pelo vasto litoral brasileiro (Rodrigues Reference Rodrigues2000).
Os dados demográficos da escravidão na cidade do Rio de Janeiro se tornam mais precisos para o período entre 1811 e 1831 em função da conjuntura histórica associada à presença da Corte Joanina. Para esse período, as estimativas são mais fidedignas, uma vez que as normas de contabilidade alfandegária e as regras de arqueação estavam sob o controle direto do estado português. Segundo pesquisas realizadas em arquivos do escritório da alfândega do Rio de Janeiro, estima-se que cerca de 600 mil cativos africanos entraram no Rio de Janeiro apenas entre os anos de 1811 e 1843 (Karash Reference Karasch2000). Manolo Florentino (Reference Florentino1995), através de pesquisa no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro em jornais, periódicos e documentos de entrada de navios, estima que de 1790 até 1830 tenham entrado pelo porto do Rio de Janeiro 706.870 cativos africanos. Os dados de Florentino são bem organizados e, portanto, valiosos para discussões sobre demografia. Quando quantificados anualmente para o período entre 1801 e 1830 observa-se uma estimativa de 564.345 para as primeiras décadas do século dezenove (Florentino Reference Florentino1995). No levantamento realizado pela equipe do “Voyage: Trans-Atlantic Slave Voyage Trade Database” para o período de 1801 até 1825 (Eltis e Richardson Reference Eltis and Richardson2008), a estimativa de desembarque para o sudeste brasileiro, em sua quase totalidade para o Rio de Janeiro, é de 449.566 cativos africanos. Somando-se os dados para os períodos entre 1801 e 1850, estima-se que 714.909 cativos tiveram como destino essa mesma região (Eltis e Richardson Reference Eltis and Richardson2008:slavevoyages.org/assessment/estimates). Comparando-se o levantamento de Florentino (Reference Florentino1995) com o de Eltis e Richardson (Reference Eltis and Richardson2008) para o período entre 1801 e 1825, observa-se 378.345 indivíduos contra 449.566, respectivamente. A diferença de 71.221 cativos entre ambos se explica pela maior abrangência territorial dos dados utilizados pelo segundo trabalho.
Assim, embora não sejam os únicos, existem pelo menos três conjuntos de dados mais robustos relativos ao comércio de africanos para o Rio de Janeiro, os quais até o momento proporcionaram um panorama convergente. São eles resultantes da pesquisa de Karash (Reference Karasch2000) sobre dados alfandegários, ou seja, em fonte estatal, a qual fornece uma boa amostra inicial; da pesquisa de Florentino (Reference Florentino1995), que se aproxima bastante dos números estimados em estudos mais recentes; e os dados coletados e organizados Eltis e Richardson (Reference Eltis and Richardson2008), mais acurados e abrangentes, os quais demonstram a magnitude do fluxo de embarcações e de pessoas, e os locais utilizados para as ações de desembarque, sendo complementados por novas fontes históricas, assim que identificadas.
Sobre a importação de africanos para o Rio de Janeiro
A despeito das preciosas informações fornecidas pelos estudos anteriormente mencionados, é correto afirmar que podem existir algumas imprecisões tanto na perspectiva quantitativa quanto qualitativa, uma vez que não há como mensurar as atividades de contrabando e as incorreções de uma escrituração suscetível à corrupção. Por outro lado, até o momento, a leitura das fontes primárias e a organização dos dados não foram realizadas considerando-se as duas etapas envolvidas na importação dos cativos, distintas sob a perspectiva conceitual e logística: a chegada dos indivíduos então tratados como “cargas vivas” no porto do Rio de Janeiro, após a travessia Atlântica (desembarque); e o local de descarga final dessas arqueações de cativos na região do Valongo (descarga).
Assim, a chegada dos africanos no porto do Rio de Janeiro se efetivava através da ação de desembarque na área da alfândega (Figura 2), onde as levas de africanos seguiam para contagem, registro e pagamento de impostos por parte dos negociantes, sendo logo em seguida reembarcados e enviados para a quarentena. A descarga final, por sua vez, ocorria apenas após o exame das autoridades sanitárias (Provedoria da Saúde) e o cumprimento de um período mínimo de oito dias de quarentena prévia.
A partir da década de oitenta do século vinte, uma perspectiva teórica surge com o lançamento do livro “História dos Bairros (Saúde, Gamboa e Santo Cristo)”, escrita por Elizabeth Dezouzart Cardoso e colaboradores em 1987. Trata-se de uma obra ricamente ilustrada com fotografias e gravuras, porém carente de citações diretas e fontes primárias. Baseada em fontes pictóricas e em poucos relatos de cronistas, a obra apresenta a ideia do “Cais do Valongo como polo central do comércio de escravos” (Cardoso et al. Reference Cardoso, Vaz, Albernaz, Aizen and Pechman1987:29; Figura 2).
O historiador Jaime Rodrigues, possivelmente influenciado pela ideia de protagonismo do Cais do Valongo contida na obra de Cardoso e colaboradores (Reference Cardoso, Vaz, Albernaz, Aizen and Pechman1987), em seu livro de 2005 “De Costa a Costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de janeiro (1780–1860)”, inaugura a teoria do desembarque direto no Cais do Valongo:
Localizado a noroeste da cidade, na enseada entre o outeiro da Saúde e o Morro do Livramento, na Freguesia de Santa Rita, o cais do Valongo dava acesso ao mercado de escravos homônimo. Entre 1780 e 1831, aproximadamente, quando da primeira proibição do tráfico no Brasil, aquele foi o local por onde os africanos legalmente importados desembarcaram no Rio de Janeiro [Rodrigues Reference Rodrigues2005:299].
A associação das ideias de protagonismo e de desembarque direto no cais torna-se o foco da investigação histórica e arqueológica que ocorreria na busca pelo Cais do Valongo a partir de 2013 com as pesquisas de Lima (Reference Lima2013a, Reference Lima2013b) e Soares (Reference Soares, Andre and Flavio2017).
Assim, percebe-se que há uma confusão gerada pelo desconhecimento de duas práticas distintas de desembaraço de mercadorias que chegam a um porto, a saber: o desembarque e a ação de descarga. Em um primeiro momento ocorre o desembarque, que se configura como trâmite de controle alfandegário; e em um segundo momento são realizadas as ações de descarregamento da mercadoria, ou descarga, que é parte da logística de importação. O desconhecimento desse detalhe, por um lado, minimiza o importante papel da alfândega do porto do Rio de Janeiro, uma vez que causa a falsa impressão de que há no século dezenove o “desembarque direto” de levas de africanos em um cais exclusivo para o tráfico negreiro. Esse é sem dúvida um aspecto muito relevante para a historiografia no que se refere ao processo de importação humana desde a África. Por outro lado, desde a obra de Cardoso e colaboradores (Reference Cardoso, Vaz, Albernaz, Aizen and Pechman1987) e, principalmente, a partir da sua escavação em 2011 no âmbito do projeto Porto Maravilha para revitalização da Zona Portuária, o Cais do Valongo vem ganhando grande notoriedade nacional e mundial. Além de receber o título de Patrimônio Mundial da UNESCO, passou a ser reconhecido, inclusive por movimentos socioculturais de lideranças afrodescendentes, como o local sagrado do desembarque de ancestrais africanos.
Atualmente, o Cais do Valongo é conhecido no meio acadêmico (Lima et al. Reference Lima, de Souza and Sene2016; Soares Reference Soares, Andre and Flavio2017) e entre o grande público como sendo o local onde desembarcaram centenas de milhares de cativos africanos que seriam vendidos no mercado do Valongo ou encaminhados para outras praças. Será que após tantas décadas de silêncio a história finalmente trouxe à luz o eco das primeiras experiências dos africanos no novo continente em sua terrível jornada rumo ao cativeiro?
A fim de discutir essa questão analisaremos no presente texto o processo de importação de cativos africanos para o Rio de Janeiro, partindo do menosprezado papel da alfândega na historiografia da escravidão brasileira, para então apresentarmos a questão da descarga final das arqueações sob uma nova perspectiva historiográfica.
Alfândega do Rio de Janeiro: O local da chegada dos cativos africanos
A alfândega do Rio de Janeiro ganhou destaque na história associada à diáspora africana a partir da pesquisa de Mary C. Karasch, apresentada na obra seminal “A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808–1850)”, publicada em 2000:
As primeiras impressões dependiam, no entanto, do período. Antes de 1824, os navios negreiros entravam livremente no porto para descarregar suas “cargas” no centro do Rio. Depois de ancorar ao largo e passar por formalidades oficiais, as tripulações dos navios tinham permissão para transferir os africanos para barcaças a remo menores e levá-los para a alfândega, no distrito comercial. As autoridades alfandegárias contavam-nos por sexo e anotavam o número de crias que acompanhavam mães. Depois que os importadores pagassem os impostos sobre todos os escravos acima de três anos de idade, os africanos eram levados em grupos para o local do leilão. Se houvesse compradores suficientes, eram imediatamente leiloados perto da alfândega e seus destinos eram determinados logo após o desembarque. Os que não fossem vendidos naquele dia eram então conduzidos para casas a fim de restaurarem a saúde e serem preparados para venda.
[. . .] Embora estivessem estabelecidos no distrito comercial havia catorze anos, os negociantes de escravos foram proibidos em 1824 de ali vender novos africanos, sendo obrigados a mudar seus negócios para o Valongo. Porém, os africanos ainda tinham de desembarcar e ser contados na alfândega antes de atravessar as ruas do Rio até o Valongo, onde eram guardados em casas ou armazéns para esperar a venda.
Em 1830, quando o tráfico de escravos foi declarado ilegal, a parada intermediária na alfândega foi eliminada [Karasch Reference Karasch2000:73-74; grifo nosso].
Foi a partir da pesquisa de Karasch, portanto, que houve uma melhor compreensão sobre os trâmites alfandegários e as distintas etapas do processo de importação dos cativos para o Rio de Janeiro. Essa primeira aproximação ao tema, no entanto, ficou mais restrita ao momento da chegada dos africanos, não existindo a preocupação em se discutir a logística relacionada ao processo de descarga final das arqueações de africanos provenientes dos navios negreiros que aportavam no Rio de Janeiro. Com a análise dos documentos primários, apresentados abaixo, esperamos contribuir para a diminuição dessa lacuna observada na produção historiográfica recente, que se tornou base para pesquisas arqueológicas e mesmo para a elaboração de um dossiê de candidatura a Patrimônio da Humanidade (UNESCO). Entendemos ser necessário o aprofundamento das pesquisas, a fim de se estabelecer bases mais sólidas e argumentações mais consistentes para um entendimento do processo de chegada, venda e interiorização dos grupos de africanos que foram introduzidos no Brasil através do processo de escravidão.
Para este fim, é preciso resgatar o papel da alfândega desde o período colonial através da análise de uma fonte documental primária. Trata-se de uma queixa dos “Oficiais da Câmara da Cidade” ao Rei de Portugal D. José I, em vinte de setembro de 1752, sobre a desordem devido à falta de observância das posturas do Senado, uma vez que os negros que “vem de Angola e Costa da Mina” são atravessados em plena alfândega. O documento informa que o Rei de Portugal, D. José I, após tomar conhecimento da queixa, mandou que o Governador e Capitão Geral, D. Antônio Almeida Soares Portugal, terceiro conde de Alvintes e Primeiro Marquês do Lavradio, ouvisse os comerciantes “homens de negócios” para ter mais notícias sobre essa matéria, e que por fim a reportasse.
O texto original é transcrito paleograficamente pela Revista do Arquivo do Distrito Federal, atual Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, ainda no final do século dezenove:
Sobre informar na representação da Câmara a respeito dos atravessadores dos negros, que vai de Angola.
Dom José por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, de quem e além mar em África senhor de Guiné e . . . Faço saber a vós governador e capitão general da Capitania do Rio de Janeiro, que vende-se e que me prestarão os oficiais da Câmara dessa cidade em carta de vinte de setembro de mil setecentos e cinqüenta e dois de que com esta ser vos remete cópia, sobre a desordem que há nessa cidade, por falta de observância que postura do Senado, principalmente no que respeita aos atravessadores dos negros que vem de Angola e Costa da Mina. Me pareceu ordenar vos informeis com vosso parecer ouvindo os homens de negócio, que vos parecer são mais desinteressados ou podem ter mais notícias desta matéria. El Rey Nosso Senhor o mandou pelos conselhos de seu conselho ultramarino abaixo assinados, e se passou por duas vias.
Estevão Luiz Correa e faz em Lisboa a vinte e três de julho de mil setecentos e sessenta – Secretário Joaquim Miguel Lopes da Lavre o fez.
João Soares Tavares – Manoel Antonio da Cunha de Souto Maior. (sic)
(Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro [AGCRJ], Archivo do Districto Federal – Revista de documentos para a história da Cidade do Rio de Janeiro, 4° ano – maio de 1897, f. 23.)
O texto apresentado é condizente com o período histórico na medida em que a conjuntura econômica aponta para uma atitude em prol dos comerciantes por parte de um déspota esclarecido, pois o rei mandara ouvir os empresários “homens de negócio”, apesar de haver uma queixa formal feita pela própria Câmara. O documento, no entanto, deixa uma dúvida: esses escravos eram vendidos imediatamente após o desembarque? Para responder a esse questionamento, recorremos à leitura de um trecho da resposta do próprio Senado da Câmara, enviada ao rei em vinte e sete de julho de 1762:
Carta do Senado da Camara, que a Ordem Retro faz menção.
Senhor, é tão grande a desordem que há nesta cidade por falta da observância das posturas do Senado, principalmente na que faz respeito aos atravessadores dos negros, que vem de Angola, e Costa da Mina, que não vivem de outro negócio para revenderem aos senhores de engenho, lavradores, roceiros, e povo da mesma, câmara digo da mesma cidade, de sorte que a saída da Alfândega, ou vão comprados ou seguem os comissários, que vem de Angola, enviado aos Senhores de Engenho, Lavradores, e Roceiros de fora para se fornecerem deles para as suas fábricas servem precisados a compre-los pelo que lhes pedem, e muitas vezes como dinheiro que era bastante para a compra de cinco escravos se não utilizam de três, ficando defraudados de que quem lhes trabalhe nos engenhos, e roças, e estas perdidas por falta de cultivo, diminuindo por esta causa as lavouras, e tendo prejuízo notável aos dízimos Reais, e como nesta cidade, se junto todos os negros, que vem do sobredito reino de Angola, e Costa da Mina, experimentam o mesmo dono, os que os vem comprar de todas as minas, assim gerais, como São Paulo, Goytacases, e Cuiabá e pela falta da sua entrada nelas experimentam um notável prejuízo todos reais precedidos tudo da limitada pena, a que se estende a postura deste Senado contra os atravessadores, como consta da cópia número primeiro, e quando o mesmo Senado ver se podia remediar mal tão grande, e pernicioso mandou publicar há anos o edital, que consta da cópia número segundo, e tendo se fixado algumas vezes no decurso dos anos passados, não for bastante para cessar o mal expressado.
A vista do qual recorre este Senado a Vossa Majestade para que com a sua clemência evite um dano, que ameaça a perdição de todo este continente, proibindo-se não atravessem negros, e contra os que violarem a ordem de Vossa Majestade, sejam punidos com a severa pena de perderem não só os ditos negros que tiverem comprado, aplicando-se o seu produto, uma parte para o conselho, outra para que sejam desterrados para Angola os transgressores, que os atravessarem nomeando Vossa majestade Ministro Reto, que privativamente conheça os ditos atravessadores, havendo devassa aberta para que prontamente se dê execução à dilatação, e que está verificada contra qualquer atravessador com número de três testemunhas se lhe imponham Câmara que Sua Majestade determine-se proceda contra essa qualidade de compradores, como atravessadores a fim dos comerciantes dos escravos, os vendem somente aos senhores de engenho, lavradores, mineiros e moradores que deles carecem facultando-se lhe para isso a demora de oito dias, depois da sua entrada, e despacho da Alfândega, sem atenderem (ainda que pareça pouco tempo) as conseqüências que disto mesmo se segue em prejuízo gravíssimo deste comércio, proibindo se lhes a liberdade de cada um os vendem logo que chegam, ou quando puder pelo risco da vinda a que estão sujeitas, quanto mais: - ‘estas chamadas atravessadores não são os que compram todos os escravos que estão nessa cidade, nem tão pouco, os consomem em si antes como pobres só compram aqueles os mais não querem, por doentes, magros, com outros defeitos, que por baratos se sujeitam a tratar delas, afim de os venderem com alguma utilidade, em remuneração do seu trabalho, isto mesmo podem fazer os interessados na conta que o Senado da Câmara na presença de sua Majestade.’ – Ultimamente Excelentíssimo Senhor nessa cidade sempre há abundância de escravos, e por falta de satisfação no tempo estipulado, e fiados no privilégios (aquele que o tem) de não ser obrigado se não pela terceira parte do rendimento de suas fazendas: Além disto entendo como entram anualmente de oito até dez mil escravos é impossível conservando-se o comércio deles sentir-se a falta ponderada, nos quintos e dízimos Reais, ao mesmo tempo que não duvidamos se diminua a entrada de escravos com detrimento do mesmo, pondo-se em prática o que por esta ordem se pretende. – Temos exposto o que alcançamos neste particular sobre o qual Vossa Excelência determinará o que for servido. Rio de Janeiro a vinte e sete de julho de mil setecentos e sessenta e dois anos. Manoel Roiz Ferreira – Antonio Pinto de Miranda, João Hopmam – Francisco Ferreira Guimarães – Manoel dos Santos Pinto – Manoel Barboza dos Santos – Manoel Ferreira Gomes [sic; grifo nosso].
(AGCRJ, Archivo do Districto Federal – Revista de documentos para a história da Cidade do Rio de Janeiro, 4° ano – maio de 1897, f. 26.)
O texto esclarece que há um interstício de oito dias entre o momento de entrada no porto, quando a carga era despachada na alfândega, e sua liberação para venda: “Facultando-lhe para isso a demora de oito dias, depois da sua entrada e despacho na Alfândega” [. . .] “proibindo-se lhe a liberdade de cada um os vender logo que chegam, ou quando puder pelo risco da vida que estão sujeitos”.
Esse documento, datado de 1762, faz referência a um período histórico anterior à transferência do Mercado de Escravos, mandada proceder pelo Segundo Marquês do Lavradio – D. Luiz de Almeida Portugal Soares D'Eça Alarcão Melo Silva Mascarenhas (décimo terceiro Vice-rei entre 1769 e 1779), – quando houve um forte arrocho econômico da metrópole sobre a colônia. Daí a preocupação do rei com os seus reais direitos advindos dos impostos cobrados na alfândega.
Para continuarmos a linha de raciocínio, é necessário procurar outra fonte ou relato que evidencie a permanência desse processo de entrada e despacho via alfândega, até o fim do tráfico legal de escravos em 1831. Para essa tarefa, recorremos ao relato do viajante Johan Moritz Rugendas, que esteve no Brasil durante o Primeiro Império, entre 1822 e 1825, e conheceu tanto o Mercado de Escravos do Valongo quanto a alfândega do Rio de Janeiro.
Logo que o negociante obtém licença para desembarcar seus escravos, são eles colocados perto da Alfândega, donde são registrados depois do pagamento dos direitos de entrada.
Da alfândega são os negros conduzidos para os mercados, verdadeiras cocheiras: aí ficam até encontrar comprador. A maioria dessas cocheiras se acha situada no bairro do Valongo, perto da praia [Rugendas Reference Rugendas, Johann1979:256; grifo nosso].
Rugendas não somente descreveu de forma textual como também desenhou o desembarque de cativos africanos nas proximidades da alfândega. Na composição sobre a obra de Rugendas “Débarquement” (Diener e Costa Reference Diener and de Fátima Costa1979), é possível notar ao fundo o Mosteiro de São Bento e o Arsenal de Marinha da Corte, corroborando a descrição textual. Percebe-se a intenção de ilustrar não somente o desembarque, mas também o processo de transporte em pequenas embarcações até o atracadouro, a escrituração e o registro. Naturalmente, não se trata de uma fotografia moderna que capta de forma instantânea a imagem, mas sim uma gravura que revela um discurso carregado de subjetividade. Ainda assim, o desenho é muito descritivo e tem a função de apresentar aos estrangeiros, através do seu relato pictórico, o cotidiano de um país considerado pitoresco.
Menos conhecido do que a gravura colorida, o risco original de Rugendas (Diener e Costa Reference Diener and de Fátima Costa1979) é muito mais intenso e ressalta o desembarque de cativos africanos no período entre 1822 e 1825 na alfândega do Rio de Janeiro, junto com outras cargas.
As conjunturas econômicas do Primeiro Império não eram tão diferentes de quando da chegada da Família Real, cerca de vinte anos antes. Havia uma grave crise financeira em função do esvaziamento dos cofres públicos devido ao retorno de D. João VI a Portugal e aovultoso endividamento assumido pelo Brasil junto à Inglaterra, em troca do reconhecimento da independência por parte de Portugal. A importante arrecadação com os direitos alfandegários, portanto, não permitiria que se renunciasse ao rígido controle exercido sobre cada arqueação de cativos africanos que entrava no porto do Rio de Janeiro.
Os documentos primários analisados, tanto textuais quanto pictóricos, portanto, atestam a primeira experiência dos cativos em terra firme e resgatam a importância da alfândega do Rio de Janeiro no processo de diáspora africana. Era da alfândega do Rio de Janeiro que as arqueações de cativos africanos partiam para diversos destinos no Brasil. Antes da obrigatoriedade de quarentena nas ilhas das Enxadas e Bom Jesus, três modalidades básicas de comércio podiam ser praticadas já a partir do desembarque, visando a interiorização da carga: o leilão direto, em atacado; a remessa de carga consignada, com o efetivo reembarque para outros pontos do litoral; e o negócio no varejo, destinado à venda direta para o pequeno consumidor.
Praias da região da Saúde: O local de descarga das arqueações de cativos africanos
Conforme relatado no trecho da resposta do Senado da Câmara enviada ao rei em vinte e sete de julho de 1762, acima transcrito, passados os oito dias de interdição obrigatória da carga viva, os comerciantes tinham autorização para vender os africanos no Mercado do Valongo. Assim, dá-se início à segunda etapa do processo de importação dos cativos. Após sua chegada no porto do Rio de Janeiro e desembaraços alfandegários, era o momento de serem reembarcados para então seguirem em um primeiro momento para as ilhas das Enxadas e posteriormente para a Ilha de Bom Jesus (Figura 3), onde cumpriam quarentena. Mas onde era realizada a descarga das arqueações?
Tal como discutido acima, essa questão foi recentemente trazida à tona após a escavação do Cais do Valongo em 2011 (Lima Reference Lima2013a, Reference Lima2013b; Lima et al. Reference Lima, de Souza and Sene2016), o qual foi considerado o local de “desembarque” no Rio de Janeiro de milhares de africanos escravizados. Na busca por documentos primários que pudessem subsidiar uma discussão mais robusta sobre essa questão, nos deparamos, na verdade, com a ausência de documentos que indicassem de forma clara a enseada do Valonguinho, onde estava localizado o referido cais, como destino final das arqueações de cativos.
Ao contrário, identificamos textos primários inéditos com indicações precisas da descarga das arqueações em outra região do antigo bairro do Valongo. É possível que a interpretação de Lima e colaboradores (Reference Lima, de Souza and Sene2016) e Soares (Reference Soares, Andre and Flavio2017) tenha se baseado em uma concepção enviesada do termo Valongo, conforme discutiremos abaixo.
Assim, à luz de documentos inéditos, discutiremos em seguida uma nova perspectiva histórica para a segunda etapa do processo de importação dos africanos para o Rio de Janeiro, a qual, assim como a primeira, era de cunho obrigatório. As etapas referidas são as de desembarque aos “pés da alfândega”, mediante rígido controle sanitário e recolhimento de direitos aduaneiros; e de descarga, quando os cativos eram finalmente entregues ao destinatário comercial assim que eram lavados e vestidos no Lazareto (Figura 2) ou após a quarentena no mesmo local.
A breve permanência dos cativos na alfândega, como referido anteriormente, tinha como objetivo resguardar os interesses do Real Erário, já que era necessário manter o rígido controle das entradas evitando o contrabando negreiro. Os africanos apenas pisavam em terra firme e logo eram reembarcados e encaminhados para outro ponto do litoral. Na etapa posterior, eles eram descarregados e ocorria a sua interiorização através da distribuição e venda direta em mercados e através do tráfico retalhista. Tratando-se do período joanino, representativo de um contexto histórico diferenciado no qual a monarquia portuguesa estava em exílio no Brasil, totalmente descapitalizada e dependente da proteção inglesa, o ordenamento das entradas das arqueações de cativos era regulado pela Intendência Geral de Polícia.
A primeira fonte que vamos analisar é uma carta do Intendente Geral da Polícia da Corte, o desembargador Paulo Fernandes Viana, datada de vinte e sete de maio de 1808. Nesse documento fica determinado que fosse feita a separação dos escravos doentes de bexigas ou escorbuto, dos sãos. Os primeiros deveriam ser levados para a Ilha das Enxadas, enquanto “os Saons desembarquem para o lugar que está por detras do trapiche da saúde” (sic) (Figura 3). E, ainda, “Aqueles que estiverem no primeiro caso deverão vir ancorar mesmo de fronte do Trapiche da Saúde, para dali fazerem o desembarque”.
Notamos que à época Paulo Fernandes Viana não fez distinção nominal entre as operações de desembarque e descarga, denominando o processo de descarga de sãos e doentes como “desembarque”. Esse detalhe não é contraditório, mas demonstra que a palavra desembarque foi utilizada em sentido prático, direto, de sair de qualquer embarcação. Da mesma forma, os demais documentos da época fazem uso apenas do termo “desembarque”, sendo ignorada a terminologia técnica para os processos em questão. O texto dá ainda outras orientações sobre as cargas de cativos infectados: “dará parte sem lhe permitir o desembarque, nem que possa navegar para a cidade”.
Registro da Carta do Intendente Geral da Polícia desta Corte dirigida ao Doutor Juiz de Fora Presidente da Câmara da mesma em 27 de maio de 1808.
Não permitindo já o estado em que se acha esta Corte que os escravos vindos da Costa d’África desembarquem para o Valongo, e ali se vendam fará V.M. [Vossa Mercê] desde já intimar o Vereador que serve de Provedor da Saúde, que além de fazer esta visita, com a maior possível circunspecção não dispensando jamais de ir a ela todas as pessoas que para isso estão deputadas; logo que achar doentes de bexigas, ou escorbutados, ordenará que estes vão para a Ilha das Enxadas, e que os sãos desembarquem para o lugar que está por detrás do Trapiche da Saúde, e ali mesmo serão expostos a vendagem, sem que possam vir para os Armazéns do Valongo, e que chame a sua presença desde já todas as pessoas que costumam traficar neste negócio, para que certos dessa providência procurem com tempo dispor ali mais acomodações para este fim. No caso porém de vir alguma contagiada dará parte sem lhe permitir o desembarque, nem que possa navegar pela cidade. Aqueles que estiverem no primeiro caso deverão vir ancorar mesmo defronte do Trapiche da Saúde, para da li fazerem o desembarque. Essa providência deve ser registrada na Câmara, para o escrivão dela a fazer ler a qualquer vereador, que para o futuro houver de servir de Provedor da Saúde. Deus guarde a Vossa Mercê. Rio de Janeiro, 27 de maio de 1808. Paulo Fernandes Viana.
Senhor Doutor Juiz de Fora Agostinho Pettra Bitencourt. Cumpra-se e registre esse, e o escrivão da Câmara remeta logo cópia desta ordem ao Vereador mais velho. Rio de Janeiro 27 de maio de 1808 – Pettra –.
Nada mais contém em a dita carta a qual fiz registrar bem, e fielmente, em fé de que conferi, subscrevi, e assinei nesta Corte do Rio de Janeiro aos 27 de maio de 1808 [sic; grifo nosso].
(AGCRJ, Archivo do Districto Federal – Revista de documentos para a história da Cidade do Rio de Janeiro, 4° ano – maio de 1897, f. 236.)
Permanecemos, portanto, alinhados à tese de Mary Karasch (Reference Karasch2000), segundo a qual acontecia um desembarque obrigatório na alfândega para os desembaraços burocráticos. Mediante o documento acima apresentado, no entanto, fica claro que após 1808, mesmo com a obrigatoriedade do desembarque na alfândega, fica proibida a entrada dos cativos recém-chegados através da região central da cidade, a saber, Rua Direita e adjacências, assim como o tráfego a pé para sua condução até o Mercado do Valongo. O documento indica claramente que após essa data as arqueações eram transportadas para a região do Morro da Saúde, ou melhor, “por detrás do Morro da Saúde” (Figura 2), no atual bairro da Gamboa. As embarcações que continham doentes eram obrigadas a descarregar as arqueações diretamente na Ilha das Enxadas, não sendo permitido nem mesmo o desembarque primário na alfândega.
A chegada da Família Real portuguesa ao Rio de Janeiro desfaz as antigas práticas comerciais coloniais. O processo de “abertura dos portos às nações amigas” fez com que a prática portuária fosse revisada, organizando-se as operações de desembarque e descarga de cativos africanos sob a tutela da Intendência Geral de Polícia da Corte, principal órgão da administração do governo absolutista, responsável pela imposição de posturas e reordenação urbana da Corte e ligada diretamente ao trono.
O documento abaixo transcrito, o alvará de vinte e dois de janeiro de 1810 no qual se “Dá Regimento ao Provedor-Mor da Saúde”, também apresenta reconhecida importância para a questão da importação de cativos africanos para o Rio de Janeiro e sua distribuição para o Mercado do Valongo. Nesse alvará é determinada a substituição do ponto de ancoragem das embarcações carregadas com arqueações de cativos da Ilha das Enxadas pela Ilha de Bom Jesus, enquanto não existia o Lazareto da Gamboa (Figura 3).
IV. As sobreditas embarcações nacionais e estrangeiras, que forem do comércio, pagarão por entrada para o Lazareto, a saber: os navios, corvetas e bergantins 2$000; as sumacas 1$200; e os barcos da Costa 400réis; o que será arrecadado na alfândega na ocasião em que se cobram os mais direitos do porto, remetendo-se todos os meses para o cofre da Saúde; e que o produto desta imposição se pagarão os ordenados, e farão as mais despesas deste estabelecimento. Quando porém estiverem em quarentena pessoas e mercadorias, deverão pagar as despesas que com elas se fizerem, como é prática nos mais Lazaretos; o que se regulará e taxará no Regimento particular, que se há de fazer para o sobredito lazareto.
V. Os navios que trouxerem carregação de escravos esperarão no ancoradouro do Poço, ou no da Boa Viagem, até que se faça a visita da Saúde pelo Guarda-Mór e demais oficiais; e feita ela irão ancorar, e ter quarentena no ancoradouro da ilha de Jesus.
VI. No ato da visita se determinarão os dias que cada um destes navios deve ter de quarentena, conforme as moléstias que trouxer, mortandade que tenha havido, e mais circunstâncias que ocorrerem; porém nunca terão de quarentena menos de oito dias, em que os negros estejam desembarcados, e em terra na referida ilha p para ali serem tratados, fazendo-os lavar, vestir de roupas novas, e sustentar de alimentos frescos; depois do que se lhes dará o bilhete de saúde e poderão entrar na Cidade para se exporem à venda no sítio estabelecido do Valongo.
VII. O referido tratamento deverá ser feito debaixo da inspeção do Guarda da Saúde que ali deve assistir, ou do Guarda–Mor, que deve cuidar também desse estabelecimento, qual constrangerá os donos a praticar estas providências; e no caso em que tenham omissão nas primeiras 24 horas, o mandará fazer à custa deles e para pagamento das despesas requererá as minhas justiças mandatos executivos, para penhorar e fazer arrematar bens que bastem para o mencionado pagamento, e para as custas respectivas [sic; grifo nosso].
(Câmara dos Deputados [CD], Alvará que dá regimento ao Provedor Mor da Saúde, 22 jan 1810)
No mesmo alvará o Príncipe Regente D. João VI determina que a utilidade dos lazaretos seja a de proporcionar o local para o desembarque de cativos africanos, agasalho dos mesmos e acomodações em terra antes de entrarem nas povoações, conforme abaixo:
XXVII. Em cada uma das referidas terras os Governadores, ouvindo ao Ouvidor da Comarca e ao Guarda-Mor respectivo, destinarão o sítio e lugar proporcionado para servir de lazareto para os negros, e mandarão fazer as acomodações precisas para o seu desembarque e agasalho em terra, onde deverá praticar o que se ordena neste Regimento, antes de entrarem nas povoações, pagando-se as despesas pelo cofre das comunicações que ficam declaradas, cujas somas se poderão adiantar pela minha Real Fazenda. E os Guardas-mores assistirão no sítio conveniente que pelos sobreditos lhes for determinado, assim como os mais Oficiais da Saúde, para com promptidão cumprirem com as suas obrigações; e executarão o que neste Regimento se lhes determina, dando as partes, e remetendo ex-ofício os processos ao Magistrado que servir de Provedor-Mor [sic; grifo nosso].
(CD., Alvará que dá regimento ao Provedor Mor da Saúde, 22 jan 1810)Outro documento, ainda mais relevante do que o anterior, que vem também direto do Príncipe Regente D. João, vai apontar a região da Gamboa, “adiante do sítio da Saúde”, ou seja, por detrás do Morro da Saúde, como o local de quarentena e “descarga” das arqueações para a região do Valongo. É o alvará de 28 de julho de 1810 – “Marca os emolumentos que devem perceber os empregados das Provedorias Móres de Saúde deste Estado”. No documento, precisamente no artigo XI está assim descrito:
XI – Constando das averiguações a que procedeu o Provedor Mór da Saúde, que a Ilha de Jesus era mui distante desta Cidade, e com passagem de mar, e por estas razões menos própria para a quarentena que devem fazer os escravos novos; e attendendo, que não é esta rigorosamente necessária para os que chegam sem suspeita de epidemias: determino, em declaração dos §§V. e VI. do Regimento que o logar da quarentena seja adiante do sitio da Saúde, designando pelo Provedor Mor; e que desembarcados nelle os escravos que chegarem sãos, sendo lavados, envoltos em roupas novas, se entreguem logo a seus donos para os poderem vender nos seus armazéns, ficando de quarentena os doentes ou empestados pelo tempo que julgar necessário [sic; grifo nosso].
(CD, Alvará que marca os emolumentos que devem perceber os empregados dos Provedores Móres de Saúde desse Estado. 28 jul 1810)O terceiro texto, anteriormente publicado por Honorato (Reference Honorato, de Carvalho Soares and Bezerra2011), é um fragmento da representação dos proprietários, consignatários e armadores de resgate de escravos apresentada a sua Alteza Real D. João, de 1810, reclamando do alto valor pago pelo aluguel dos galpões destinados ao “desembarque” e venda de escravos.
[. . .] os proprietários são obrigados pela visita da saúde a desembarcarem as armações inteiras em um armazém da Gamboa a título de Lazareto para se pagarem aos proprietários do dito armazém, quatrocentos reis por cada um por entrarem nele, serem lavados, e vestidos de novo para saírem para os outros do Valongo, lugar destinado a venda deles [. . .] [grifo nosso].
(Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, manuscrito II-34,26,019, documento 65, Representação dos Proprietários, Consignatários e Armadores de Resgate de Escravos a Sua Alteza Real, [?] jul 1810)
Ao relatarem as suas queixas, os próprios comerciantes de escravos afirmam que são obrigados a ‘desembarcar’ “as armações inteiras na Gamboa a título de Lazareto” (Figura 2), ou seja, a descarregar os cativos de cada navio na área localizada detrás do trapiche da Saúde. Esse documento confirma que a determinação do intendente de polícia de 1808 e o alvará com força de lei do próprio D. João de 1810 estavam sendo cumpridos. É importante salientar que o documento original foi assinado por trinta e nove negociantes e traficantes de escravos, e que todos afirmam que são obrigados a fazer a descarga das armações de escravos novos na Gamboa.
Até o momento, portanto, temos três documentos oficiais: o primeiro redigido pelo Intendente Geral de Polícia e dois alvarás com força de lei do próprio Príncipe regente D. João. Temos também uma declaração de 39 (trinta e nove) comerciantes e mercadores de escravos, afirmando que o local de “desembarque” de todos os africanos, doentes ou sãos, era realizado nas fraudas do Morro da Saúde (região da Gamboa), mesmo antes da construção do lazareto.
O último documento que levantamos é o já conhecido relato de um médico francês do ano de 1829 (Sigaus Reference Sigaud1844), período final do tráfico legal de escravos, citado na obra de Rodrigues (Reference Rodrigues2005). Nesse relato é observado o “desembarque” de africanos doentes de escorbuto na praia do Morro da Saúde.
J'ai vu débarquer, em 1829, un chargement de négres scorbutiques, à La plage de Morro-da-Saúde; à mesure qu'on s’ efforçait de lês mainenir debbut, une lypothimie subite survenait, et dans peu de minutes les négres expiraient sans covulsions [Sigaud Reference Sigaud1844].
(Já vi um desembarque, em 1829, um carregamento de negros escorbuticos na praia do Morro da Saúde; à medida que se esforçavam para ficar de pé, uma lipotímia subitamente os acometia, e em poucos minutos os negros espiravam sem convulsões; tradução nossa.)
Morro da Saúde, praia do Morro da Saúde, por detrás do Trapiche da Saúde, adiante do sítio da Saúde. Essa localidade da Gamboa, referida com distintas denominações, é apontada nas fontes primárias como o ponto de descarga de todos os africanos que foram vendidos como escravos no Mercado do Valongo ou que pereceram e foram enterrados no Cemitério dos Pretos Novos (Figura 2), também conhecido como cemitério do Valongo, localizado em um dos flancos do morro da Saúde.
No nosso entendimento, a atribuição da descarga de milhares de africanos em um cais localizado na enseada do Valongo passa por questões de toponímia, a saber, uma compreensão equivocada do topônimo Valongo. O Morro da Saúde estava localizado no interior de uma área geograficamente circunscrita, distante do centro da cidade, conhecida como Valongo. Laudos de vistoria realizados no Cemitério dos Pretos Novos, localizado junto ao morro, também o localizavam no bairro do Valongo (Figura 4). Aparentemente, toda essa região onde foi implantado o complexo escravista era genericamente conhecida como Valongo. Assim, seria natural no século dezenove dar essa denominação à área de descarga das arqueações de cativos sem com isso referir-se a qualquer cais construído ao final da Rua do Valongo, mas sim ao litoral da Saúde.
O nome Valongo é na verdade uma corruptela da junção de duas palavras: vale + longo. É, portanto, o nome de um acidente geográfico, ou seja, é o longo vale que se forma entre o atual Morro da Providência (antigo Morro do Livramento) e o Morro da Saúde (Figura Suplementar 1). Se olharmos a evolução da cidade através dos mapas e a documentação histórica, observamos que o acidente geográfico se torna um lugarejo, vai crescendo, até por fim se tornar um bairro. Com a abertura da via marítima sobre a praia do Valongo (Figura 5), conhecida como Rua da Praia do Valongo, mais tarde como Rua da Saúde e por último como Rua Sacadura Cabral, toda a região entre o Morro do Valongo (Morro do Livramento) e o Morro da Saúde vai ser conhecida como Valongo.
Outro acidente geográfico, o Valonguinho (Figura Suplementar 2), praticamente deixa de existir quando as duas pedras que formavam a sua enseada são destruídas: a Pedra da Prainha (posteriormente “pedra do sal”) e a pedreira da praia do Valongo, ficando como testemunho somente o pequeno vale entre os morros da Conceição e do Livramento, conhecido naquele trecho, à época, como morro do Valongo.
O Valongo a partir da experiência náutica
Segundo o arqueólogo Nelson Mendonça Junior (Reference Mendonça2017):
O Valongo tem que ser entendido através da visão de quem vem do mar [. . .]. Não podemos esquecer que antes mesmo de ter vocação portuária, era local de pescadores e de pequenos construtores navais, que batizaram o litoral através de uma visão típica do homem do mar, que é muito diferente da visão do terráqueo.
A afirmativa de Mendonça Jr. passou a fazer sentido em nossa pesquisa no momento em que elaboramos a maquete do relevo de toda a região do Valongo. De fato, o acidente geográfico só pôde ser visto em toda a sua plenitude quando simulamos a visão de quem avistava o litoral através do mar, tal como os tripulantes que transportavam as arqueações de cativos. Da terra, o ângulo de visão que se forma a partir da linha costeira não permite visualizar plenamente a imponência do vale na paisagem (Figuras Suplementares 1, 2 e 3).
Com o avanço das análises de documentos e plantas cadastrais, fica evidente que o Valongo não denominava somente o cais do intendente de polícia, ou o mercado de escravos, mas sim toda uma localidade circunscrita geograficamente que surge ao longo de uma enseada e de uma praia, marcadas pela visão marítima de um grande vale existente entre os Morros do Livramento e da Saúde (Figura Suplementar 3).
Para uma visualização da região do Valongo e Valonguinho no período anterior às obras de abertura da via marítima (Rua da Praia do Valongo), e antes do início do processo de aterramento, recorremos à Planta de 1808 levantada por ordem do Príncipe Regente D. João (futuro Rei D. João VI) no momento da chegada da Família Real portuguesa ao Rio de Janeiro. Nela, a Rua do Valongo, atual Rua Camerino, foi chamada de Rua do Valonguinho, ocorrendo uma confusão natural entre a nomenclatura de ambas. Valonguinho foi o nome dado à parte final da Rua do Valongo, localizada na enseada entre a Pedra da Prainha e a Pedreira do Valongo. O nome Rua do Valongo foi a denominação dada ao acesso à região do Valongo, da mesma forma que a Rua da Saúde, a Rua do Livramento, e a Rua da Gamboa também davam acesso a esses logradouros homônimos. A abrangência do logradouro era, portanto, normalmente mais amplo do que a rua que o citava. A Rua da Saúde (antiga Rua da Praia do Valongo) não começava no Morro da Saúde, mas na Pedra da Prainha, se estendendo até o Trapiche da Saúde, esse sim, no sopé do Morro da Saúde. A Figura Suplementar 2, baseada na Planta de 1808, resume a geografia e a localização dos principais pontos aqui discutidos, a saber, o Cais do Valongo, o mercado do Valongo, a enseada do Valongo e a enseada do Valonguinho.
Acreditamos que a análise crítica das fontes primarias acima apresentadas, em conexão com os preceitos teórico-metodológicos da arqueologia da paisagem e com o auxílio da técnica de modelagem 3D, tenham configurado elementos suficientes e robustos para entendermos que a dinâmica de abastecimento do mercado de escravos do Valongo não passava pelo primeiro cais do Valongo, mandado construir pelo Intendente de Polícia em 1810.
Morro da Saúde: Região de apoio para a quarentena e descarga de arqueações de escravos
De acordo com a cartografia de época, o ponto central do mercado de escravos (Figura 5) estava situado no entroncamento entre a antiga Rua do Valonguinho (atual Rua Camerino) e a Rua da Praia do Valongo (atual Rua Sacadura Cabral). Continuação natural do caminho que ligava o centro da cidade até a região do Valongo, era diariamente frequentada por senhores e senhoras em busca de novos cativos. Além do comércio negreiro, uma série de outros negócios relacionados ao cotidiano em terra firme e no mar tornava a área bastante movimentada.
Mais afastada dessa área central do mercado, a região do morro da Saúde (Figura 4) acabou por atuar como um ponto de apoio na logística que envolvia o processo de importação dos africanos cativos. Como discutido anteriormente, na enseada da Gamboa e no entorno do Morro da Saúde (Figura 2) eram realizadas as descargas de escravos sãos e doentes; na enseada da Gamboa também foi construído o Lazareto para lavar e vestir os cativos, assim como para tratar e manter em quarentena os doentes; o sopé do morro da Saúde também foi o destino final daqueles que morriam antes de serem vendidos no mercado.
A idéia, naturalmente, era exibir no mercado cativos que possuíssem atrativos para compra. Assim, era importante que apresentassem boa saúde e que estivessem minimamente vestidos e limpos. Em alguns casos passava-se óleo em seus corpos para disfarçar imperfeições ou lacerações na pele, ou ainda para destacar características físicas.
Não seria, portanto, uma boa estratégia comercial “desembarcar” africanos recém chegados da África no Cais do Valongo, ponto central do mercado. Normalmente encontravam-se em condições deploráveis, doentes (muitas vezes com doenças infecto-contagiosas), alguns extremamente debilitados, imundos, e semi-nus ou mesmo nus. A circulação dessa carga em meio a centenas de pessoas, além de representar um grave problema de saúde pública, naturalmente não favoreceria as vendas.
Considerando-se que tanto o Lazareto quanto o cemitério (Figura 2), lugares obrigatórios para a recepção dos escravos novos, estavam localizados nas faldas do morro da Saúde, o desembarque nesse litoral resultaria em uma logística muito mais eficiente. A necessidade de escolta de centenas de cativos até o Lazareto, do lado oposto do morro da Saúde; o carregamento de doentes, moribundos e mortos; os riscos de fugas e rebeliões; todos esses contratempos seriam, assim, minimizados.
Considerações finais
A análise e a interpretação de fontes escritas primárias, em sua maioria inéditas, nos permitiram discutir a entrada, o desembarque e a descarga de navios negreiros no Rio de Janeiro a partir de uma nova perspectiva histórica. Como resultado, observamos que a teoria que reconhece o protagonismo do Cais do Valongo nesse processo, até então apontado como local de “desembarque” obrigatório das arqueações negreiras, não encontra respaldo nos documentos e demais fontes históricas acima apresentadas. A partir da nossa análise propomos o desdobramento do processo de entrada dos cativos no Rio de Janeiro em duas etapas, bem como o deslocamento da operação de descarga final para outra área no bairro do Valongo. Em um primeiro momento, os desembarques ocorreriam no pátio da alfândega do Rio de Janeiro, atual casa França-Brasil; e em um segundo momento, a partir de 1808, a descargas ocorreriam por detrás do morro da Saúde (atual bairro da Gamboa).
A identificação dessa área de descarga das arqueações, na extremidade mais distante e remota do bairro do Valongo, amplia em muito a área conhecida para o complexo escravista do Valongo, um dos mais importantes do Brasil e talvez das Américas à epoca, servindo como relevante informação para novas e futuras pesquisas. O conjunto arquitetônico Cais do Valongo/Cais da Imperatriz, por sua vez, continua imbuído de seu valor simbólico, uma vez que marca o ponto central do comércio negreiro no antigo complexo escravista. As pedras do cais, no entanto, foram tão somente protagonistas secundários dessa cruel história. Os principais atores sociais foram as milhares de pessoas trazidas à força de sua terra natal para no Brasil servirem de escravos.
Finalmente, enfatizamos que a pesquisa aqui apresentada não pretendeu desqualificar os trabalhos anteriormente realizados sobre o Cais do Valongo, os quais certamente trouxeram inúmeras contribuições para a arqueologia da diáspora africana e para a arqueologia urbana. Estamos todos caminhando no mesmo sentido, afinal, reconhecer, respeitar e identificar locais entendidos como sagrados por afrodescendentes e pela população em geral, por onde passaram os ancestrais de milhares de brasileiros, é sem dúvida um resgate histórico obrigatório e um meio eficaz de preservação da memória nacional.
Agradecimentos
Agradecemos as sugestões dos revisores anônimos.
Declaração de disponibilidade dos dados
As fontes primárias citadas no texto foram pesquisadas no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), na Câmara dos Deputados (CD) e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Material suplementar
Para acessar o material suplementar que acompanha esse artigo, visite: https://doi.org/10.1017/laq.2020.23.
Figura Suplementar 1. Valongo observado do mar – Detalhe da fotografia de maquete do relevo da região do Valongo. Confecção de R. B. Tavares.
Figura Suplementar 2. Valonguinho observado do mar – Detalhe da fotografia de maquete do relevo da região do Valongo. Confecção de R. B. Tavares.
Figura Suplementar 3. Voo de Pássaro sobre o relevo do Valongo – detalhe da fotografia de maquete do relevo da região do Valongo. Confecção de R. B. Tavares.