Os estudos zooarqueológicos são de imensa importância para a compreensão das relações estabelecidas entre humanos e a fauna em contextos arqueológicos (Andrade Lima Reference Andrade Lima1989; Bicho Reference Bicho2011; Mazzorin Reference Mazzorin2008; Reitz e Wing Reference Reitz and Wing2008). Esses estudos não se limitam apenas à dieta das populações pretéritas, mas incluem outros aspectos sociais tais como o uso de artefatos manufaturados em ossos de fauna como acompanhamento funerário e o consumo ritual de determinados grupos de animais, assim como a produção de artefatos em ossos e galhadas de cervídeos utilizados na caça e demais atividades cotidianas desses grupos. Além do aspecto ligado à subsistência, animais em contextos arqueológicos são tidos como bons marcadores de aspectos sociais já que se trata de escolhas culturais, que podem ser observadas a partir da presença ou ausência de determinados taxa no registro arqueológico (Klökler Reference Klökler2012a). No Brasil, diversos estudos em sítios arqueológicos apontam para escolhas culturais de animais específicos para consumo (Andrade Lima Reference Andrade Lima1989, Reference Andrade Lima1991; Klökler Reference Klökler2008; Mingatos Reference Mingatos2017; Mingatos e Okumura Reference Mingatos and Okumura2016) e para o uso ritualístico de determinados grupos nos chamados “festins funerários” (Klökler Reference Klökler2008, Reference Klökler2012a). Além do consumo (ritual ou não), animais foram importantes fontes de matéria-prima para a confecção de artefatos, como por exemplo, o uso de galhadas, cornos, dentes, couro e tendões. Embora artefatos ósseos não sejam tão abundantes quanto materiais líticos e cerâmicos na maioria dos sítios arqueológicos brasileiros, ainda representam uma parte importante dos artefatos feitos em matéria perecível, como é o caso de cestarias, artefatos em couro ou em madeira.
Um dos estudos pioneiros relacionados a esses tipos de materiais foi feito por Kidder (Reference Kidder1932) para artefatos encontrados na região de Pecos, no Texas. Seu estudo propôs uma classificação que valorizava as características estilísticas dentro de categorias amplas (como “furador”, por exemplo). A partir desse estudo inicial, foi possível avançar nos estudos de replicação e micro desgaste dos artefatos encontrados em Grasshopper Pueblo, no Arizona, e analisados por Olsen (Reference Olsen1979).
O uso generalizado de ossos e galhadas de cervídeos como matérias prima, por inúmeros povos pré-históricos, deu-se provavelmente devido ao seu conhecimento sobre a elasticidade dos ossos e a resistência das galhadas, que seriam características desejáveis para a fabricação de determinadas ferramentas (Backwell e d'Errico Reference Backwell and d'Errico2004; Choyke e Shibler Reference Choyke, Schibler, St-Pierre and Walker2007; Currey Reference Currey1983, Reference Currey1989; d'Errico et al. Reference D'Errico, Henshilwood, Lawson, Vanhaeren, Tillier, Soressi, Bresson, Maureille, Nowell, Lakarra, Backwell and Julien2003; Henshilwood et al. Reference Henshilwood, d'Errico, Marean, Milo and Yates2001; Jin e Shipman Reference Jin and Shipman2010; Legrand e Sidéra Reference Legrand, Sidéra, St-Pierre and Walker2007). Estudos descritivos da indústria óssea sobre dentes, conchas e feitos em galhadas de cervideos no Brasil remontam à década de 1960 (Andrade Lima Reference Andrade Lima1991; Beck Reference Beck1970, Reference Beck1972; Faure et al. Reference Faure, Guerin and da Luz2011; Fossari Reference Fossari1985; Kipnis et al. Reference Renato, Bissaro, Ernani and Araujo2010; Plens Reference Plens2007; Prous Reference Prous2009; Santos Reference Santos2011; Tiburtius e Bigarella Reference Tiburtius and Bigarella1960). Outros trabalhos mencionam a presença desses artefatos, especialmente em contextos funerários (Bandeira et al. Reference Bandeira, Chahud, Ferreira and Pacheco2016; Dias de Lima Reference Dias de Lima1987; Klökler Reference Klökler2012a, Reference Klökler2012b, Reference Klökler, Roksandic, Souza, Eggers, Burchell and Klökler2014; Klökler e Gaspar Reference Klökler, Gaspar, Gaspar and Souza2013; Kneip et al. Reference Kneip, Machado and Crancio1995; Lessa e Carvalho Reference Lessa and Carvalho2015; Martin Reference Martin1994; Ricken et al. Reference Ricken, Pavei, Zocche, Campos and dos Santos2014; Silva et al. Reference Silva, de Carvalho and de Queiroz2014; Solari e Da Silva Reference Solari and da Silva2017; Tenório Reference Tenório2004). Dessa miríade de publicações, apenas um autor se debruçou sobre a replicação dos artefatos (Prous Reference Prous2009), mais precisamente de três espátulas feitas de ossos de carneiro. O autor descreveu todo o procedimento de manufatura, desde a opção por trabalhar com o osso seco (três meses após a morte do animal), assim como o modo de quebra das epífises para a construção da pré-forma, os processos de polimento e, por fim, os estudos dos traços deixados nas três peças confeccionadas.
No Brasil, a presença de remanescentes ósseos de cervídeos em sítios arqueológicos pré-históricos se faz presente em praticamente todo o território, incluindo as regiões sul, sudeste, nordeste e centro-oeste do país (Bissaro Reference Bissaro2008; Borges Reference Borges2009; Jacobus Reference Jacobus1983, Reference Jacobus2013; Jacobus e Rosa Reference Luiz and Rosa2013; Kipnis Reference Kipnis2008; Mingatos Reference Mingatos2017; Pacheco Reference Pacheco2008; Plens Reference Plens2007; Queiroz Reference Queiroz and Goñalons2004; Rosa Reference Rosa2009). No entanto, apesar da alta frequência de partes de cervídeos nesses contextos brasileiros, estudos relacionados a artefatos feitos com galhadas e ossos de cervídeos estão longe de esgotar a potencialidade informativa desse tipo de material. De fato, o uso de ossos e galhadas desses animais como adorno ou artefato foi estudado apenas na região nordeste do país por Faure e outros (Reference Faure, Guerin and da Luz2011) e Queiroz e outros (Reference Queiroz, Guérin, Silva, Faure and de Carvalho2018) e na região sudeste por Araujo e outros (Reference Araujo, Pugliesi, Santos and Okumura2017), Kipnis e outros (Reference Renato, Bissaro, Ernani and Araujo2010), Prous (Reference Prous2009) e Santos (Reference Santos2011).
O objetivo do nosso estudo é apresentar como os ossos e as galhadas de cervídeos foram usados para a confecção de artefatos em três sítios arqueológicos associados a grupos caçadores-coletores no sudeste e sul do território brasileiro. Além da determinação taxonômica, apresentamos uma discussão acerca da possível importância dos cervídeos para esses grupos humanos ao longo do Holoceno no Brasil.
Materiais e métodos
Foram selecionados artefatos feitos em ossos e galhadas de cervídeos oriundos de três sítios arqueológicos associados a grupos caçadores-coletores localizados nas regiões sudeste e sul do Brasil (Figura 1): Lapa do Santo (Matozinhos, Minas Gerais), Abrigo sob Rocha Tunas (Arapoti, Paraná) e Garivaldino (Brochier, Rio Grande do Sul). Esses sítios foram selecionados devido ao fato de serem associados a grupos caçadores- coletores, porém localizados em regiões distintas do território brasileiro. Além disso, a quantidade de material escavado e a existência de análises já feitas em outros materiais (lítico, cerâmica, sepultamentos humanos, etc.) também favoreceram nossa escolha, a fim de poder incluir os artefatos ósseos em um contexto mais amplo e conhecido. Os três sítios são brevemente apresentados a seguir.
Sítios estudados
Tunas (PR-WB-16)
O abrigo sob rocha Tunas (PR-WB-16) localiza-se no município de Arapoti, no estado do Paraná. Todos os artefatos ósseos e demais remanescentes faunísticos recolhidos ao longo das escavações que ocorreram entre 2001 e 2006, coordenadas por Igor Chmyz, foram analisados por uma de nós (GSM). As datações originais (Chmyz et al. Reference Chmyz, Sganzerla, Volcov, Bora and Seccon2008:274) obtidas a partir de amostras de ossos e carvões oriundos do corte 4 forneceram as seguintes datas: 9630 ± 40 (nível 135–145 cm) e 7170 ± 60 aP (nível 65–75 cm) que quando calibradas resultam em 10.994 ± 130 cal aP e 8003 ± 49 cal aP (Tabela Suplementar 1). Os níveis mais recentes, não datados, apresentam material cerâmico atribuído à tradição Taquara, indicando uma provável ocupação do local até o Holoceno tardio. Pode-se, portanto, propor uma ocupação caçadora-coletora na qual foram observadas numerosas pontas de projétil bifaciais (Moreno de Sousa Reference Moreno de Sousa2019a; Okumura e Araujo Reference Okumura and Araujo2015, Reference Okumura and Araujo2017) e uma ocupação mais tardia, associada a grupos ceramistas (Chmyz et al. Reference Chmyz, Sganzerla, Volcov, Bora and Seccon2008). Todos os remanescentes ósseos faunísticos coletados foram analisados de forma preliminar por Chmyz e outros (Reference Chmyz, Sganzerla, Volcov, Bora and Seccon2008) e uma análise mais detalhada do mesmo material, englobando a taxonomia e tafonomia dos remanescentes está sendo realizada por uma de nós (GSM).
No que se refere aos artefatos, foi observado a presença de artefatos e/ou fragmentos de artefatos em praticamente todos os níveis arqueológicos (antigos e recentes), com exceção dos níveis entre 45–55 cm e 115–125 cm. Na Tabela 1, encontram- se contabilizados os materiais oriundos dos cortes três e quatro (os quais foram analisados para esse artigo), já que esses cortes não sofreram nenhuma perturbação estratigráfica.
Garivaldino (RS-TQ-58)
O sítio arqueológico Garivaldino (RS-TQ-58) é um abrigo sob rocha escavado por Mentz Ribeiro e equipe entre os anos de 1960 e 1980, localizado no município de Brochier, Rio Grande do Sul (Ribeiro e Ribeiro Reference Ribeiro and Ribeiro1999). Os níveis mais antigos desse sítio datados a partir de carvões, chegam a 9430 ± 360 aP (Tabela Suplementar 2; Riberio e Ribeiro Reference Ribeiro and Ribeiro1999:12–13) e a presença de cerâmica nos níveis mais recentes (não datados) indicam que o local foi ocupado até o Holoceno tardio (Riberio e Ribeiro Reference Ribeiro and Ribeiro1999). A coleção arqueofaunística foi analisada por Queiroz (Reference Queiroz2001, Reference Queiroz and Goñalons2004) e Rosa (Reference Rosa2009), que concluíram que o grupo associado ao sítio Garivaldino se alimentava de mamíferos, incluindo porcos, roedores, cervídeos (Mazama gouazoubira, Ozotoceros bezoarticus e Blastocerus dichotomus) e primatas, além de répteis como lagartos e alguns tipos de aves como codornas. Foram encontrados inúmeros artefatos ósseos, incluindo pontas ósseas, contas de colares, dentes de tubarões e pressores feitos com partes das galhadas de cervídeos. Todos os níveis arqueológicos mostraram a presença de artefatos feitos em ossos e/ou galhadas de cervídeos e todos os artefatos recolhidos ao longo das campanhas de escavação foram analisados.
O material lítico, que apresenta abundantes pontas de projétil, foi analisado por diversos autores (Moreno de Sousa Reference Moreno de Sousa2019a; Okumura e Araujo Reference Okumura and Araujo2013, Reference Okumura and Araujo2014a, Reference Okumura and Araujo2014b, Reference Okumura and Araujo2015; Ribeiro e Ribeiro Reference Ribeiro and Ribeiro1999). Okumura e Araujo (Reference Okumura and Araujo2014a), ao analisar a indústria lítica e os padrões de dieta já estudados por Queiroz (Reference Queiroz and Goñalons2004) e Rosa (Reference Rosa2009) apontam para uma impressionante estabilidade cultural ao longo de pelo menos 160 gerações humanas. Os estudos tecnológicos e experimentais recentemente feitos sobre a indústria lítica desse sítio demonstraram o uso de pressores feitos a partir de partes de galhadas de cervídeos para a confecção de pontas líticas provavelmente utilizadas para caça (Moreno de Sousa Reference Moreno de Sousa2019a).
Lapa do Santo
O sítio Lapa do Santo é um abrigo de rocha calcária situado no município de Matozinhos, Minas Gerais. Encontra-se na região de Lagoa Santa, que tem sido, desde o século dezenove, alvo de pesquisas tanto arqueológicas quanto paleontológicas. Os materiais aqui analisados são oriundos das escavações de Walter Neves entre os anos de 2001 e 2009 (Da-Glória et al. Reference Da-Glória, de Oliveira and Neves2017). Inúmeras datações radiocarbônicas foram feitas a partir de carvões e ossos humanos, resultando em datas entre 10.490 ± 50 aP e 790 ± 40 aP (Tabela Suplementar 3; Araujo et al. Reference Araujo, Neves and Kipnis2012; Strauss et al. Reference Strauss, Oliveira, Villagran, Bernardo, Salazar-García, Bissaro, Pugliese, Hermenegildo, Santos, Barioni, de Oliveira, de Sousa, Jaouen, Ernani, Hubbe, Inglez, Gratão, Rockwell, Machado, de Souza, Chemale, Kawashita, O'Connell, Israde, Feathers, Campi, Richards, Wahl, Kipnis, Araujo and Neves.2016). Muito foi produzido sobre o sítio, incluindo análises sobre os processos de formação (Villagran et al. Reference Villagran, Strauss, Miller, Ligouis and Oliveira2017), estudos sobre a indústria lítica (Araujo et al. Reference Araujo, Pugliesi, Santos and Okumura2017; Bueno Reference Bueno2012; Moreno de Sousa e Araujo Reference Moreno de Sousa and Araujo2018; Pugliese Reference Pugliese2007), indústria óssea (Santos Reference Santos2011), padrões de sepultamento (Strauss et al. Reference Strauss, Oliveira, Villagran, Bernardo, Salazar-García, Bissaro, Pugliese, Hermenegildo, Santos, Barioni, de Oliveira, de Sousa, Jaouen, Ernani, Hubbe, Inglez, Gratão, Rockwell, Machado, de Souza, Chemale, Kawashita, O'Connell, Israde, Feathers, Campi, Richards, Wahl, Kipnis, Araujo and Neves.2016), biodistância (Neves et al. Reference Neves, Mark, Menezes and Vicensotto2014; Nunes Reference Nunes2010; Posth et al. Reference Posth, Azaridis, Skoglund, Mallick, Lamnidis, Rohland, Nägele, Adamski, Bertolini, Broomandkhoshbacht, Cooper, Culleton, Ferraz, Ferry, Furtwängler, Haak, Harkins, Harper, Hünemeier, Lawson, Llamas, Michel, Nelson, Oppenheimer, Patterson, Schiffels, Sedig, Stewardson, Talamo, Wang, Hublin, Hubbe, Harvati, Delaunay, Beier, Francken, Kaulicken, Reyes-Centeno, Rademaker, Trask, Robinson, Gutierrez, Prufer, Salazar-García, Chim, Gomes, Alves, Liryo, Inglez, Oliveira, Bernardo, Barioni, Wesolowski, Sccheifler, Rivera, Plens, Messineo, Figuti, Corach, Scabuzzo, Eggers, De Blasis, Reindel, Méndez, Politis, Tomasto-Cagigao, Kennet, Strauss, Fehren-Schmitz, Krause and Reich2018) e remanescentes arqueofaunísticos (Bissaro Reference Bissaro2008; Mingatos Reference Mingatos2017; Mingatos e Okumura Reference Mingatos and Okumura2016; Perez Reference Perez2009). A partir dos estudos zooarqueológicos, foi possível observar uma permanência dos hábitos alimentares ao longo do Holoceno (Araujo et al. Reference Araujo, Pugliesi, Santos and Okumura2017) e, principalmente, o consumo majoritário de cervídeos, especialmente os do gênero Mazama, por essa população (Mingatos Reference Mingatos2017; Perez Reference Perez2009).
Apesar de todos os artefatos ósseos do sítio Lapa do Santo terem sido analisados anteriormente por Santos (Reference Santos2011), a pesquisa atual realizada por uma das autoras envolve a revisão e complementação da analise anterior, incluindo a observação de diferentes graus queima, analises métricas, taxonômicas e a analise tecnológica dos artefatos.
Artefatos ósseos
No que concerne aos estudos relacionados aos artefatos ósseos, devido à falta de padronização na produção acadêmica brasileira sobre a análise dos mesmos, foi necessária a observação meticulosa do repertório presente nos sítios arqueológicos estudados, a formulação de uma nomenclatura tipológica e a criação de um protocolo de analise independente, que contemplasse o observado e que pudesse ser aplicado a múltiplas coleções. A proposta de protocolo de analise gerado a partir da observação dos artefatos inclui a separação das peças em grupos, de acordo com suas semelhanças tipológicas, inclui também medidas como largura, comprimento, espessura, graus de queima baseados em Stiner e outros (Reference Stiner, Kuhn, Weimer and Bar-Yosef1995; 0 – não queimado; 1 – menos de 50% carbonizado; 2- mais de 50% carbonizado; 3- totalmente carbonizado; 4 – menos de 50% calcinado; 5- mais de 50% calcinado e 6- completamente calcinado), tipos de polimento, que podem ter sido ocasionados pelo fogo ou por material abrasivo, sentido do polimento, transversal, perpendicular ou ambos e marcas de uso (quando aplicável). Essa proposta de protocolo busca padronizar as informações recolhidas sobre os artefatos de forma a facilitar a observação de possíveis padrões métricos e técnicas de manufatura que poderão ser constatadas a partir da aplicação de testes estatísticos. Estudos de arqueologia experimental serão feitos futuramente com o intuito de propor possíveis formas de manufatura desses artefatos (levando em consideração as matérias primas disponíveis nas regiões dos sítios arqueológicos) e suas possíveis funções, não sendo apresentados nesse manuscrito.
Todos os artefatos analisados passaram por uma identificação taxonômica, por análises tafonômica e tipológica e, a partir das informações geradas, foram classificados de acordo com sua tipologia em diferentes classes, os formatos mais comuns de cada instrumento estão ilustrados na figura sendo eles: furadores (Figura 2a), pontas ósseas (Figura 2b), pontas lascadas (Figura 2c), pressores (Figura 2d), espátulas (Figura 2e) e ponteiros (Figura 3a). Traços referentes à manipulação intencional de ossos e galhadas foram observados com a ajuda de uma lupa 30 × 211 mm.
Foram classificados como furadores (Figura 2a) os artefatos que não possuíam gume cortante, apresentavam o ápice anguloso, mas não pontiagudo tal qual as pontas ósseas, e sim arredondado (Kipnis et al. Reference Renato, Bissaro, Ernani and Araujo2010; Santos Reference Santos2011). Pontas ósseas (Figuras 2b, 3b e 3c) são artefatos que apresentam na parte distal um gume cortante, mais ou menos simétrico e/ou um ápice pontiagudo/penetrante (Camps-Fabrer et al. Reference Camps- Fabrer, Ramseyer and Storder1990; Delporte e Mons Reference Delporte and Mons1988; Piel-Desruisseaux Reference Piel-Desruisseaux1990).
Pontas lascadas feitas em ossos possuem as mesmas características morfológicas de pontas líticas pedunculadas ou não pedunculadas. Principalmente gumes afiados e ou ápice pontiagudo. Até o momento, foram encontradas apenas 3 no sítio Garivaldino. Uma das pontas analisadas foi desenhada (Figura 2c) e classificada como pertencente ao estilo Brochier (Moreno de Sousa Reference Moreno de Sousa2019a).
Foram considerados pressores todos os fragmentos de galhadas de cervídeo cujo ápice encontra-se desgastado e plano. Os pressores (Figura 2d) de acordo com a definição de Moreno de Sousa (Reference Moreno de Sousa2019a:442), são instrumentos utilizados para pressionar a rocha, a fim de retirar lascas dos artefatos líticos. Muitos exemplares estão quebrados na parte distal do artefato ocasionados, possivelmente, pelo uso. Para tais artefatos não foi possível a identificação de taxon além da categoria Cervidae, devido à grande modificação observada nas galhadas.
Espátulas (Figura 2e e 3d) ósseas são um tipo de artefato comum, observado em inúmeros sítios pré-históricos em todo o mundo; no Brasil, são encontrados nas regiões centro-oeste e sudeste do país (Serranópolis [GO] e Lagoa Santa [MG]). Esse tipo de artefato é confeccionado normalmente a partir da quebra de uma das epífises do osso metapodial de cervídeo, sendo que o ápice desses artefatos, depois de polido, termina de forma arredondada (Camps-Fabrer et al. Reference Camps-Fabrer, Cattelain, Choï, David, Benito, Provenzano and Romseyer.1998; Kipnis et al. Reference Renato, Bissaro, Ernani and Araujo2010; Prous Reference Prous2009). Seu formato lembra um raspador e sua função é muito discutida na literatura nacional (Kipnis et al. Reference Renato, Bissaro, Ernani and Araujo2010; Kneip et al. Reference Kneip, Machado and Crancio1995; Santos Reference Santos2011; para citar alguns) e internacional (Arrighi et al. Reference Arrighi, Bazzanella, Boschin and Wierer2015; Legrand e Sidéra Reference Legrand, Sidéra, St-Pierre and Walker2007; Olsen Reference Olsen1979), não existindo um consenso sobre seu real uso na pré-história.
Ponteiros (Figura 3a) feitos com galhadas de cervídeos foram utilizados para lascamento de ferramentas de pedra por percussão indireta (David e Soresen Reference Eva and Soresen2016). Assim, a retirada de lascas não é realizada diretamente por um percutor, mas com a ajuda de um instrumento intermediário, o chamado ponteiro (punch), que nesse caso foi feito a partir da ponta de galhada de um cervídeo.
A identificação taxonômica dos materiais se deu a partir de comparações com a coleção de referência “Renato Kipnis”, disponível no Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH) do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Manuais de identificação osteológica (Schmid Reference Schmid1972) também foram usados, além dos trabalhos produzidos por Loponte (Reference Loponte2004) e Loponte e outros (Reference Loponte, Corriale, Mucciolo and Acosta2019). Ao todo, foram analisados 359 artefatos feitos em galhadas de cervídeos, ossos ou dentes de mamíferos em geral, oriundos dos três sítios, incluindo 157 artefatos do sítio Garivaldino, 44 do sítio Tunas e 158 do sítio Lapa do Santo. No que se refere aos artefatos feitos especificamente em ossos e galhadas de cervídeos e que foram analisados para esse artigo, foram identificados 62 artefatos oriundos do sítio Lapa do Santo, 24 artefatos do sítio Garivaldino e 5 artefatos do sítio Tunas. Devido à transformação dos ossos ao longo do processo de polimento e moldagem do artefato, assim como aos aspectos tafonômicos ou pós-deposicionais que podem afetar esses artefatos, em muitos casos não foi possível identificar o taxon específico utilizado como matéria-prima. Além disso, alguns artefatos que puderam ser identificados como sendo oriundos de partes do corpo de cervídeos, não forneceram informação anatômica suficiente para uma determinação taxonômica mais específica a nível de gênero ou espécie. Portanto, o número total de artefatos identificados como feitos a partir de partes esqueléticas de cervídeos é menor do que a quantidade de artefatos ósseos identificados. O mesmo ocorre com fragmentos de artefatos identificados como produzidos a partir de ossos de mamíferos no geral, que infelizmente não puderam ser classificados devido a sua fragmentação.
Resultados
A quantidade de artefatos formais feitos com ossos ou galhadas de cervídeos, assim como os artefatos cuja identificação não pode ir além da categoria “mamífero”, encontra-se separada por sítios e apresentada nas Tabelas 1, 2 e 3. Artefatos indubitavelmente feitos de ossos ou galhadas de cervídeos foram observados nos três sítios, embora em números bastante distintos: cinco artefatos no sítio Tunas, incluindo pontas e pressores (Tabela 1); 62 artefatos (espátulas, pressores e furadores) no sítio Lapa do Santo (Tabela 2) e 24 artefatos no sítio Garivaldino (pressores, ponteiros e furadores; Tabela 3). Ao todo, quatro espécies de cervídeos foram identificados: Mazama americana (Figura 4) e Mazama gouazoubira (Figura 5), Ozotoceros bezoarticus (Figura 6) e Blastocerus dichotomus (Figura 7), cuja distribuição original encontra-se na Figura 1. É possível observar que os tipos de artefatos variam em cada sítio analisado, assim como as partes anatômicas utilizadas para a confecção de cada artefato. Em Tunas, observam-se pontas feitas em metapodiais (Figura 3b) e ossos longos, assim como pressores feitos em galhadas de cervídeo. Espátulas são observadas apenas na Lapa do Santo, feitas a partir de metapodiais (Figura 3d) e partes da tíbia. Os ossos metapodiais também eram usados por esse grupo para a confecção de pontas (Figura 3c). Já no sítio Garivaldino, foi possível identificar uma diversidade maior de taxa, e galhadas de cervídeos foram usados como pressores (Figura 3e). Ponteiros foram observados apenas no sítio Garivaldino (Figura 3a), feitos a partir das pontas das galhadas de Blastoceros dichotomus.
Após uma minuciosa observação realizada com a ajuda de uma lupa 30 x 21 mm, constatou-se que as pontas ósseas foram polidas seguindo três direções principais: perpendicular, transversal ou horizontal. Em alguns casos, como no sítio Garivaldino, foi possível encontrar fragmentos dos polidores de pedra (Figura 8), que possivelmente foram usados para a manufatura dessas pontasFootnote 1. Nos demais sítios, nenhum polidor foi identificado.
Discussão
Além do papel relacionado à subsistência, anteriormente observado nos sítios Lapa do Santo e Garivaldino (Mingatos Reference Mingatos2017; Mingatos e Okumura Reference Mingatos and Okumura2016; Queiroz Reference Queiroz2001, Reference Queiroz and Goñalons2004; Rosa Reference Rosa2009),Footnote 2 os cervídeos também parecem ter tido um papel importante como fontes de matéria-prima para a confecção de distintos tipos de artefatos, feitos a partir de diferentes partes anatômicas nesses sítios. O mesmo pode ser dito a respeito do sítio Tunas, cuja maior parte dos artefatos foi feita com ossos de cervídeos, principalmente metapodiais e fragmentos de galhadas. Além disso, estudos em andamento por uma das autoras (GSM) indicam também um papel importante dos cervídeos na dieta das populações humanas pretéritas ao longo do Holoceno.
Dada a natureza da nossa classificação dos artefatos, baseada em aspectos morfológicos, torna-se um desafio inferir de forma mais precisa a função ou uso dos mesmos. Por exemplo, as espátulas observadas apenas no sítio Lapa do Santo possuem função ainda desconhecida para arqueólogos, podendo ter sido usadas na produção de outros artefatos, como é o caso dos anzóis encontrados nesse sítio e cuja origem taxonômica das partes ósseas não pôde ser identificada.
Nos casos onde a taxonomia é identificada, observa-se o uso de osso e galhadas de espécies nas regiões estudadas, como o Mazama gouazoubira (Figura 5) e Ozotoceros bezoarticus (Figura 6) e Blastocerus dichotomus (Figura 7). Muitos fragmentos de artefatos podem ser tanto de Mazama gouazoubira quanto de Mazama americana (Figuras 4 e 5), já que ambas as espécies estavam presentes na região, (principalmente no caso do sítio Lapa do Santo e do Sítio Tunas) mas devido à alta modificação dos ossos para a confecção de artefatos, muitos foram identificados pelo gênero Mazama ou por Mazama sp. (Tabelas 1 e 2).
O gênero Mazama é um grupo taxonômico composto por cervídeos de pequeno e médio porte e com galhadas de até duas ramificações (Rafinesque Reference Rafinesque1817). Sua distribuição vai desde o nordeste mexicano até o centro da Argentina. É conhecido por habitar uma ampla variedade de habitats como florestas montanhosas, florestas tropicais chuvosas e secas, savanas arbóreas, e incluindo altitudes que variam desde o nível do mar até 4.000 metros (Allen Reference Allen1915; Eisenberg Reference Eisenberg1989; Sarria Perea Reference Sarria Perea2012). A variedade de tamanhos observada entre as diferentes espécies do gênero Mazama teria se dado pela alta variabilidade de habitats ocupados por esses animais (Eisenberg Reference Eisenberg1989). No Brasil, atualmente, há quatro espécies do gênero Mazama: Mazama americana, Mazama bororo, Mazama gouazoubira e Mazama nana. No entanto, as principais espécies identificadas nos sítios arqueológicos das regiões sudeste e sul do país se restringem a Mazama americana e Mazama gouazoubira (Black-Décima et al. Reference Black-Décima, Rossi, Vogliotti, Cartes, Maffei, Duarte, González, Juliá, Duarte and Jaboticabal2010). Nesse estudo, foi identificada a ocorrência apenas de Mazama gouazoubira no sítio Garivaldino. A seguir, apresentamos uma breve descrição de cada uma das espécies observadas em nossa amostra.
Mazama americana (Erxleben Reference Erxleben1777)
É a maior espécie do gênero (Figura 4), apresentando uma aparência robusta. Seu comprimento varia de 90 a 145 cm e 70 cm de altura (Duarte Reference Duarte1997; Emmons e Feer Reference Emmons and Ferr1997; Juliá e Richards Reference Juliá, Richard, Dellafiore and Maceira2001; Reid Reference Reid1997). A massa entre machos e fêmeas é semelhante, variando de 12 até 60 kg (Redford e Eisenberg Reference Redford and Eisenberg1992). Apenas os machos possuem galhadas, essas são pequenas com as pontas finas, sem ramificações e com cerca de 10 cm de comprimento (Varela et al. Reference Varela, Trovati, Guzmán, Rossi, Duarte, Barbanti Duarte and González2010:152). É a espécie mais abundante das florestas neotropicais, e no território brasileiro é facilmente encontrada na região sudeste e parte da região sul do país (Emmons e Feer Reference Emmons and Ferr1997; Juliá e Richard Reference Juliá, Richard, Dellafiore and Maceira2001; Reid Reference Reid1997; Figura 1).
Mazama gouazoubira (Fisher Reference Fisher1814)
Compõem essa espécie, cervídeos de pequeno e médio porte que medem em média 65 cm (Black-Décima et al. Reference Black-Décima, Rossi, Vogliotti, Cartes, Maffei, Duarte, González, Juliá, Duarte and Jaboticabal2010; Loponte et al. Reference Loponte, Corriale, Mucciolo and Acosta2019), os machos possuem galhadas sem ramificações (Figura 5). Não foi constatado dimorfismo sexual nessa espécie. A massa dessa espécie varia de 11 a 25 kg e habitam locais de vegetação esparsa e matas ciliares. No território brasileiro, são encontrados do centro-leste do Brasil ao noroeste da Bolívia. De acordo com Loponte e outros (Reference Loponte, Corriale, Mucciolo and Acosta2019), os limites da região sul do continente não são muito claros (Figura 1).
Ozotoceros bezoarticus (Linnaeus Reference Linnaeus1758)
Conhecido popularmente como Veado dos Pampas ou Veado Campeiro, Ozotoceros bezoarticus é uma espécie de cervídeo de médio porte cuja massa varia de 20 a 40 kg (Figura 6). Seu tamanho ultrapassa o do Mazama gouazoubira. Apenas machos possuem galhadas ramificadas em até três pontas que chegam a medir até 30 cm e as fêmeas tendem a ser bem menores, não possuindo galhadas (Gonzalez et al. Reference Gonzalez, Cosse, Braga, Vila, Merino, Dellafiore, Cartes, Maffei, Dixon, Duarte and González2010). São encontrados no centro-oeste do país, no sul da bacia amazônica, no planalto mato- grossense até o Rio São Francisco em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul (Figura 1), estendendo-se até o norte da Patagônia argentina e as áreas próximas aos Andes. Preferem paisagens abertas, com pouca vegetação como locais de pastagem e o cerrado brasileiro.
Blastocerus dichotomus (Illiger Reference Illiger1815)
É o maior cervídeo americano conhecido, mede cerca de dois metros de altura e sua massa pode chegar até 150 kg (Figura 7). As galhadas podem alcançar até 60 cm de comprimento, sendo que cada galhada está segmentada em dois ramos principais que se subdividem próximo ao crânio. Cada galhada pode ter até cinco pontas voltadas para o crânio e o dimorfismo sexual da espécie é observado na ausência de galhadas nas fêmeas, sendo seu tamanho diminuto em comparação aos machos (Duarte et al. Reference Duarte, Piovezan, Zanetti, Ramos, Tiepolo, Vogliotti, de Oliveira, Rodrigues and de Almeida.2012; Loponte Reference Loponte2004). Apesar de originalmente sua presença ter sido observada desde o nordeste brasileiro, passando pelo sudeste, centro-oeste e sul do país, atualmente se limita à região do Pantanal brasileiro, na região da ilha do Bananal, rio Araguaia, rio Guaporé e nas várzeas do rio Paraná (Duarte et al. Reference Duarte, Piovezan, Zanetti, Ramos, Tiepolo, Vogliotti, de Oliveira, Rodrigues and de Almeida.2012; Figura 1).
As escolhas de materiais osteodontoqueráticos como matéria-prima para a confecção de artefatos muito provavelmente estão relacionadas à resistência e elasticidade dos mesmos, além da existência de uma forma original semelhante à forma final desses artefatos. Ossos, dentes e galhadas são formados basicamente por hidroxiapatita e cálcio, que são distribuídos pelas células presentes na matriz óssea através dos osteoclastos e osteoblastos. Os osteoclastos e osteoblastos são responsáveis pela consolidação e regeneração contínua do tecido ósseo (Mazzorin Reference Mazzorin2008; Reitz e Wing Reference Reitz and Wing2008). Esses elementos, quando combinados, determinam a dureza e a elasticidade do esqueleto animal. A elasticidade é determinada pela capacidade do tecido não se romper com facilidade e absorver impactos. A dureza não indica maior elasticidade. Ossos longos, por exemplo, tendem a ser mais duros e pouco elásticos, quebrando-se mais facilmente que as galhadas de cervídeos, que tendem a ser mais elásticas e mais macias, contudo, difíceis de se romper (MacGregor e Currey Reference MacGregor and Currey1983).
Ao longo do crescimento anual das galhadas em cervídeos, esses são revestidos por uma película vascularizada que os “protege” enquanto ainda estão em formação. Quando as galhadas crescem e se “solidificam” passando de cartilagem a tecido ósseo (composto por mais de 60% de parte inorgânica), essa película protetora deixa de ser vascularizada e passa a se desfazer. Ao longo desse processo, os cervídeos tendem a acelerar sua retirada raspando as galhadas em árvores e rochas. Esses movimentos geram inúmeras marcas nas galhadas que podem, facilmente, ser confundidas com polimento intencional e uso das galhadas para o lascamento (Jin e Shipman Reference Jin and Shipman2010; Olsen e Shipman Reference Olsen and Shipman1988). Os estudos desenvolvidos por Olsen (Reference Olsen1979) e Jin e Shipman (Reference Jin and Shipman2010) apresentam uma lista de características importantes que ajudam a distinguir traços que tenham sido causados pelos animais, daqueles que foram ocasionados por grupos humanos pretéritos ao usar tais estruturas como ferramentas. No caso do polimento atribuído a comportamento animal raspar as galhadas, tanto para demarcar o território quanto para retirada da película vascularizada, as autoras verificam que os traços de polimento são superficiais e aleatórios e não apresentam um padrão definido (Jin e Shipman Reference Jin and Shipman2010). Igualmente, fraturas chanfradas (cujo desgaste se dá em apenas um lado das pontas das galhadas) também podem ser ocasionadas por esse mesmo comportamento dos cervídeos (Haynes Reference Haynes2002; Lyman et al. Reference Lyman, O'Brien and Hayes1998). Partindo dos critérios apresentados pelos artigos supracitados, e depois de uma minuciosa análise, é possível confirmar que o material analisado apresenta marcas indicadoras de ação intencional humana. Isso se deve justamente à presença de traços regulares e contínuos ao longo das peças e do ápice desgastado contrastando com o corpo do artefato. Contudo, é preciso ser cauteloso ao propor que as galhadas de cervídeos encontrados em contextos arqueológicos nas quais pode-se observar algum tipo de polimento ou fratura foram necessariamente utilizados como ferramentas para a retirada de lascas líticas (através de lascamento por pressão, percussão macia ou percussão indireta), pois é necessário levar em consideração o contexto em que esses artefatos foram encontrados e as condições pré e pós-deposicionais que podem ter afetado esse tipo de material. Apesar disso, estudos experimentais têm demonstrado a eficiência do uso de partes das galhadas de cervídeo para o lascamento e replicação de artefatos líticos pré-históricos (Moreno de Sousa Reference Moreno de Sousa2019a), incluindo sítios do contexto do Holoceno inicial brasileiro, como Garivaldino (Moreno de Sousa Reference Moreno de Sousa2019b).
Os artefatos ósseos analisados nos sítios Tunas e Lapa do Santo não demonstram preferência por nenhum outro taxon além de cervídeos como fonte de matéria prima para a fabricação de tais artefatos. Contudo, no sítio Garivaldino, foi identificada uma diversidade maior de taxa usada para a manufatura desses artefatos, incluindo ossos de aves, primatas, porcos e roedores.
No que se refere aos pressores, no sítio Garivaldino, se fazem presentes (n = 18), assim como as pontas líticas com sinais de retoques por pressão (Moreno de Sousa Reference Moreno de Sousa2019a). Esse sítio também se destaca por ser o único dentre aqueles estudados a apresentar um fragmento de galhada de Blastocerus dichotomus com marcas de percussão indireta (Figura 3a), assim como um fragmento de pressor feito com galhada de Ozotoceros bezoarticus (Figura 3e).
A análise do sítio Tunas revelou a preferência pelo gênero Mazama, assim como foi observado no sítio Lapa do Santo. Contudo, nesse sítio não foram encontradas espátulas (Figuras 2e e 3d), como no sítio Lapa do Santo, mas sim, pontas feitas em metatarso de cervídeo (Figura 3c), o que indica uma produção artefatual diversa do sítio de Minas Gerais. Na Tabela Suplementar 4 é possível vislumbrar quantidades e tipos de artefatos feitos em ossos e galhadas de cervídeos por sítio estudado.
Conclusão
As análises sobre as coleções de artefatos ósseos desses sítios continuam em andamento e em breve será possível discutir outros e novos aspectos relacionados ao uso de materiais faunísticos como matéria-prima para produção de artefatos na pré-história brasileira. É importante frisar que a indústria óssea, assim como a lítica e a cerâmica, possui grande potencial para definição de culturas arqueológicas. Os resultados apresentados neste artigo são apenas parte do potencial informativo que uma análise detalhada dos artefatos produzidos em ossos e galhadas de cervídeos pode fornecer. Por muito tempo, esses artefatos foram apenas descritos como componentes do registro arqueológico, com pouca importância, exceto quando se tratava de contextos funerários.
É possível afirmar que cervídeos foram utilizados tanto como alimento quanto como matéria-prima para a confecção de artefatos. O uso e a manipulação intencional de ossos e galhadas de cervídeos podem ser confirmados a partir da observação dos traços de polimento, que na amostra analisada apresenta direção única e contínua de polimento e pelas marcas de uso, no caso das galhadas (ápice achatado/desgastado), incluindo (em muitos casos) marcas de queima. Esse estudo preliminar também confirma o uso de espécies locais para a confecção desses artefatos e uma preferência clara para o uso dos ossos de cervídeos (independentemente da espécie) enquanto matéria-prima para confecção de artefatos ósseos ou das pontas das galhadas de cervídeo. Assim, é possível depreender que o conhecimento sobre as propriedades físicas dos ossos e das galhadas de cervídeos para a confecção de artefatos já era conhecido pelos grupos que viveram ao longo do Holoceno no leste da América do Sul. Dada a escassez de estudos sistemáticos sobre artefatos feitos a partir de remanescentes faunísticos no Brasil, nosso artigo chama a atenção para a necessidade de estudos mais sistemáticos e detalhados acerca de tais artefatos, a fim de que seja possível construir um panorama mais completo sobre as indústrias osteodontoqueráticas na pré-história brasileira.
Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer ao Dr. Walter Neves, ex-coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (LEEH-IB-USP) por autorizar a análise do material do sítio Lapa do Santo no início dessa pesquisa; ao Dr. Igor Chmyz e ao Dr. Fabio Parenti do Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade Federal do Paraná (CEPA–UFPR) pelo acesso aos remanescentes faunísticos do sítio Tunas e ao Dr. Sérgio Klamt do Centro de Ensino e Pesquisa Arqueológica da Universidade de Santa Cruz do Sul (CEPA–UNISC) por permitir acesso aos artefatos ósseos do sítio Garivaldino. Por fim, gostaríamos de agradecer ao Dr. João Carlos Moreno de Sousa (LEEH-IB-USP) pela leitura e revisão do manuscrito. Essa pesquisa teve financiamento de CAPES sob a forma de uma bolsa de doutorado para GSM (88882.425678/2019-01). MO é Bolsista Produtividade CNPq (302163/2017-4).
Declaração de disponibilidade dos dados
Todos os materiais analisados estão disponíveis nas seguintes instituições: Para o sítio Lapa do Santo: Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos–Departamento de Genética e Evolução Humana do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Para o sítio Tunas: Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade Federal do Paraná. Para o sítio Garivaldino: Centro de Ensino e Pesquisa Arqueológica da Universidade de Santa Cruz do Sul.
Material suplementar
Para acessar o material suplementar que acompanha esse artigo, visite https://doi.org/10.1017/laq.2020.4.
Tabela Suplementar 1: Datações do sítio Tunas. Fonte: Chmyz e outros (Reference Chmyz, Sganzerla, Volcov, Bora and Seccon2008)
Tabela Suplementar 2: Datações do sítio Garivaldino. Fonte: Ribeiro e Ribeiro (Reference Ribeiro and Ribeiro1999).
Tabela Suplementar 3: Datações do sítio Lapa do Santo. Fonte: Araujo e outros (Reference Araujo, Neves and Kipnis2012).
Tabela Suplementar 4: Distribuição tipológica dos artefatos feitos em ossos e chifres em cada sítio estudado.