INTRODUÇÃO
A partir de 2014, a política brasileira foi sacudida pela Operação Lava Jato (LJ), uma iniciativa anticorrupção centrada no direito. A Lava Jato revelou um grande esquema de corrupção na estatal brasileira Petrobras, o qual envolvia diretores da empresa, dirigentes de partidos políticos e grandes empreiteiras. A Lava Jato foi, a um só tempo, disruptiva e controversa. Para alguns, ela deu início a um novo capítulo na história do Brasil, marcado por maior respeito ao Estado de DireitoFootnote 1 e um estado mental coletivo preocupado com o fim da impunidade e com a promoção da integridade na política e nos negócios (Bullock & Stephenson, Reference Bullock and Stepenson2020). Para outros, ela minou a democracia e o Estado de Direito, pavimentando o caminho para um líder autocrático – o ex-Presidente Jair Bolsonaro (Anderson, Reference Anderson2019; Bello et al., Reference Bello, Capela and Keller2020; Carvalho & Palma, Reference Carvalho and Palma2020; de Sa e Silva, Reference de Sa e Silva2020a; Evans, Reference Evans2018; Mészáros, Reference Mészáros2020).
Este artigo joga luzes sobre tais discussões, abordando a Lava Jato como um espaço de produção de consciência jurídica. Empiricamente, o artigo tem como lastro um conjunto de interações dos Procuradores da Lava Jato na rede social Facebook entre 2017 e 2019. A partir desses dados, o artigo responde à seguinte pergunta: “Quando os Procuradores e a população falavam sobre a Lava Jato, sobre o que falavam?”. Meus achados de pesquisa corroboram as visões mais céticas da operação. As interações entre os Procuradores da Lava Jato e usuários do Facebook coproduziram um esquema cultural contrário ao Estado de Direito. O trabalho anticorrupção foi glorificado, entendido como messiânico ou patriótico, e não como um esforço institucional baseado em – e sujeito a – regras. A sociedade foi chamada a participar no combate à corrupção, o qual, porém, se tornou uma cruzada contra as instituições, com ataques sistemáticos ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Este esquema cultural deu sustentação a mobilizações na internet e fora dela, podendo ter legitimado os movimentos autocráticos de Bolsonaro.
Estes achados têm implicações tanto para estudos sobre consciência jurídica quanto para estudos sobre anticorrupção. Em relação aos estudos sobre consciência jurídica, eles somam a uma nova e promissora linha de pesquisa, definida como “consciência jurídica relacional” (Chua & Engel, Reference Chua and Engel2019), desenhada para capturar os processos interativos através dos quais esquemas culturais compartilhados acerca do direito são produzidos e mobilizados. Nessa seara, defendo que as plataformas de redes sociais sejam analiticamente incorporadas ao espaço social onde o Estado de Direito é reconstruído ou desconstruído; e que postagens/comentários passem a ser utilizados como fontes de dados válidas nos estudos. Também defendo análises mais integradas dos temas de identidade, mobilização e hegemonia, bem como a necessidade de maior nuance nos estudos sobre resistência (Ewick & Silbery, Reference Ewick and Silbey1998, Reference Ewick and Silbey2003). Já em relação aos estudos sobre anticorrupção, defendo que os trabalhos que levem a cultura mais a sério e que examinem como consciência e ideologia contribuem para a produção – ou destruição – da integridade em instituições políticas e outras esferas.
O artigo se divide em cinco partes. A seção 2 apresenta uma visão geral da Lava Jato. A seção 3 situa o artigo teoricamente. A seção 4 descreve dados e procedimentos analíticos. A seção 5 apresenta achados. A seção 6 discute tais achados e apresenta conclusões.
UM BREVE RELATO DA LAVA JATO – E UM NOVO OLHAR PARA A OPERAÇÃO
A Lava Jato começou como uma investigação bastante comum de crimes de lavagem de dinheiro, na qual a Polícia Federal prendeu o doleiro Alberto Youssef e dois de seus consortes. Esse grupo atuava próximo a um lavajato, o que deu o nome à operação. Youssef já era conhecido dos policiais federais; mais de uma década antes da Lava Jato, ele foi pego fazendo remessas financeiras para o exterior em favor de políticos e empresários em outro caso de grande notoriedade – depois invalidado pelas cortes superiores – o escândalo do Banestado. Desta vez, a polícia encontrou vínculos suspeitos entre Youssef e um ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa. Um e-mail de Youssef indicava que ele teria adquirido um veículo SUV para dar de presente a Costa. Costa foi preso e revelou um esquema de corrupção ainda maior na Petrobras, envolvendo fraudes em licitações e contratos da estatal em benefício de um cartel de empreiteiras, as quais, em contrapartida, pagavam subornos e propinas a dirigentes da Petrobras, bem como a políticos e partidos. Costa teria recebido seu SUV como parte desses pagamentos (de Sa e Silva, Reference de Sa e Silva2020a; Moro, Reference Moro2018).
A descoberta do esquema da Petrobras alterou o escopo e a significância da Lava Jato. Os CEOs das maiores empreiteiras nacionais foram arrastados para o centro da operação, com destaque para a Odebrecht, um conglomerado que havia se expandido agressivamente no mercado global. Muitos CEOs foram acusados e presos por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa.Footnote 2 Igualmente notáveis foram os efeitos da Lava Jato na política. Políticos e dirigentes dos principais partidos brasileiros foram acusados criminalmente e os principais eventos políticos subsequentes no país foram enredados pela operação. Em 2014, Dilma Rousseff – então Presidenta da República e filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT) – foi reeleita por uma pequena margem de votos. O processo eleitoral foi fortemente polarizado, com a corrupção sendo um tema central da campanha e, em 2016, ela acabou sofrendo um impeachment. Em 2017, o ex-Presidente Lula da Silva – um ícone da esquerda brasileira e do PT – foi condenado por corrupção e lavagem de dinheiro no âmbito da Lava Jato. Em 2018, Lula foi preso e tornado inelegível durante a campanha presidencial na qual ele liderava as pesquisas. Com Lula fora das urnas, o vencedor foi Bolsonaro, um ex-capitão do exército e político de extrema direita, conhecido por seu apoio à ditadura militar e por suas falas ultrajantes contra mulheres, negros e a comunidade LGBTQ+ (de Sa e Silva, Reference de Sa e Silva2020a).
A Lava Jato teve consequências para além do Brasil. Políticos de países africanos, da América Central e da América do Sul também foram implicados.Footnote 3 O caso se viu ainda sob a jurisdição dos Estados Unidos, o que levou a acordos entre empresas brasileiras como Odebrecht e Petrobras e autoridades americanas envolvendo bilhões de dólares em propina.Footnote 4 Ao fim, a Lava Jato ficou conhecida como o maior esquema de corrupção de todos os tempos,Footnote 5 maior que o Watergate.
Enquanto durou, a Lava Jato e aqueles que estavam por trás da operação foram reverenciados por veículos da imprensa, acadêmicos e organizações no Brasil e no mundo. Sérgio Moro – o juiz que decidiu os principais casos da Lava Jato – e a força tarefa do Ministério Público Federal liderada pelo jovem Procurador da República Deltan Dallagnol foram tratados como heróis na luta contra a corrupção e na promoção do Estado de Direito, recebendo por isso muitos prêmios e honrarias (de Sa e Silva, Reference de Sa e Silva2020a). Com o passar do tempo, porém, os métodos, resultados e legado da Lava Jato se tornaram mais controversos. Moro e os procuradores foram acusados de interferir indevidamente na política brasileira e de atuar com viés contra a esquerda e o PT (Anderson, Reference Anderson2019; Bello et al., Reference Bello, Capela and Keller2020; Evans, Reference Evans2018, Mészáros, Reference Mészáros2020). Dois eventos jogaram lenha nessa fogueira. Em 2018, após as eleições, Moro se tornou Ministro da Justiça de Bolsonaro.Footnote 6 Em 2019, o portal The Intercept Brasil publicou uma série de mensagens vazadas que haviam sido trocadas entre Moro e os procuradores da Lava Jato, no que ficou conhecido como escândalo da Vaza Jato.Footnote 7 Essas mensagens – e outras que apareceram depoisFootnote 8 – expuseram práticas controvertidas por parte de Moro e dos membros da força tarefa, inclusive nos casos contra Lula.
Cerca de um ano após a eleição de Bolsonaro, a Lava Jato perdeu o seu ímpeto e, para todos os efeitos, está morta.Footnote 9 Assim que assumiu a presidência, Bolsonaro nomeou um novo Procurador-Geral da República, Augusto Aras, o qual considerava forças-tarefa como a da Lava Jato ineficientes e propôs a criação de uma unidade anticorrupção, ligada ao seu gabinete, para conduzir tais investigações. Bolsonaro também atacou a independência de agências que foram cruciais para o sucesso da Lava Jato, como a unidade de inteligência financeira nacional, COAF. Em abril de 2020, Moro pediu demissão do Ministério, alegando interferência do Presidente na Polícia Federal visando proteger seus filhos de investigações. Em fevereiro de 2021, a força tarefa da Lava Jato foi oficialmente dissolvida. Por ironia, isso se deu no mesmo dia em que Arthur Lira, citado na Lava Jato, foi eleito Presidente da Câmara dos Deputados – com o apoio de Bolsonaro.
Embora as intenções e o viés dos agentes da Lava Jato mereçam escrutínio, a operação apresenta outras características que têm recebido menos atenção de pesquisadores. A Lava Jato não consistiu numa campanha da sociedade civil baseada em denúncias e exposição pública de práticas e indivíduos corruptos; tampouco foi um esforço burocrático baseado na promoção da transparência e no uso da tecnologia. Foi uma operação conduzida por operadores do direito, em nome do direito e por meios essencialmente jurídicos. Ao mesmo tempo, a Lava Jato teve uma dimensão pública bastante singular. Conforme os próprios agentes por trás da operação reconhecem, a Lava Jato foi estrategicamente desenhada para ser executada em fases.Footnote 10 De maneira cíclica, investigadores conduziam novas etapas, cumprindo mandados de busca e apreensão e de prisão. Essas operações, todas com codinomes cativantes, mantinham viva a atenção do público e faziam com que o caso evoluísse como uma série de TV – senão como uma telenovela (de Sa e Silva, Reference de Sa e Silva2020a).
Além disso, os resultados da Lava Jato receberam ampla publicidade. O Ministério Público lançou um portal online detalhando os trabalhos da operação e disponibilizando documentos dos casos. Após cada fase da Lava Jato, procuradores e investigadores realizavam coletivas de imprensa para explicar as medidas adotadas e como elas se encaixavam na operação. Ao mesmo tempo, Moro liberava documentos para a imprensa, alimentando a população com um mar de informações, incluindo peças processuais, extratos bancários e imagens de depoimentos (de Sa e Silva, Reference de Sa e Silva2020a). Tudo isso deu ensejo a uma discussão pública sobre direito, justiça, corrupção e política, a qual, dada a prevalência do uso de smartphones no Brasil,Footnote 11 transbordou para as redes sociais, onde alcançou todos os lares do país.Footnote 12 Procuradores da Lava Jato participaram ativamente deste processo, utilizando – e, assim, popularizando – a hashtag #lavajato para disseminar materiais e declarações sobre a investigação.Footnote 13
Considerando a Lava Jato como um processo de elevada saliência, no qual agentes do direito estabeleceram intensa comunicação com o público brasileiro, podemos então vislumbrar abordagens promissoras de pesquisa para examinar a operação. Neste artigo, parto dos estudos culturais sobre corrupção e, especialmente, de desdobramentos recentes nas pesquisas sobre consciência jurídica, para desenvolver uma dessas abordagens.
DA ANTICORRUPÇÃO À CONSCIÊNCIA JURÍDICA RELACIONAL: BASES TEÓRICAS E ÁREAS DE CONTRIBUIÇÃO DESTE ESTUDO
Ao longo das últimas décadas proliferaram trabalhos acadêmicos sobre corrupção. Muitos dos estudos seminais nesse campo trataram a corrupção como algo próprio do “Terceiro Mundo”, refletindo premissas da teoria da modernização, segundo a qual a corrupção – ou ausência dela – estava relacionada a estágios de subdesenvolvimento político (Huntington, Reference Huntington1968; Klitgaard, Reference Klitgaard1988; Nye, Reference Nye1967). Em geral, esses estudos utilizaram o modelo da escolha racional para estimar as causas e consequências da corrupção. As causas eram comumente entendidas como o problema da relação agente–principal. Indivíduos corruptos eram vistos como agentes encarregados de atuar em favor do bem comum, mas que acabavam por tirar vantagem para si próprios (Bhagwati, Reference Bhagwati1982; Klitgaard, Reference Klitgaard1988: Rose-Ackerman, Reference Rose-Ackerman1978). Assim, acadêmicos se voltaram para o estudo das estruturas de incentivo que poderiam levar os agentes a tal comportamento (Rose-Ackerman, Reference Rose-Ackerman1978, Reference Rose-Ackerman1999).
O modelo da escolha racional seguiu influente na medida em que uma indústria anticorrupção foi estabelecida no âmbito das políticas de desenvolvimento internacional. Essa indústria reuniu organizações internacionais, consultores, think tanks, acadêmicos e empreendedores de política pública no desenho de soluções de política pública que pudessem tornar países e empresas mais resilientes à corrupção (Sampson, Reference Sampson2010). Estas soluções seguiram compartilhando as premissas de que mudanças nas estruturas de incentivo, muitas vezes via reformas na legislação ou no funcionamento das agências de implementação das leis, poderiam alterar o comportamento individual e coletivo. Com o surgimento dessa indústria, o escopo dos estudos sobre corrupção e anticorrupção também foi modificado. A corrupção passou a ser definida como “o abuso do poder [a si] confiado para ganho privado” e, empiricamente, foi equiparada ao suborno (Davis, Reference Davis2019; Wedel, Reference Wedel2012). As pesquisas privilegiaram análises de organizações governamentais e agentes públicos, ao invés de empresas e outros atores não-estatais (Hough, Reference Hough2013; Sampson, Reference Sampson2010; Wedel, Reference Wedel2012).
Antropólogos, sociólogos e outros cientistas sociais chegaram com algum atraso e permaneceram relativamente marginais nos estudos sobre corrupção e na indústria anticorrupção. Ainda assim, eles desafiaram o predomínio da abordagem de escolha racional ao, por exemplo, introduzir análises culturais. O potencial desconstrutivo dos estudos culturais sobre corrupção e anticorrupção é duplo. Primeiro, eles demonstraram que a definição convencional de corrupção não era universalmente compartilhada. Em alguns países e comunidades, o suborno não apenas era comum, mas culturalmente aceito e socialmente esperado (Hasty, Reference Hasty2005; Lomnitz, Reference Lomnitz and Dalton1971; Wedel, Reference Wedel1986; Yang, Reference Yang1989). Segundo, eles demonstraram que medidas promovidas globalmente como soluções para a corrupção muitas vezes não faziam sentido nos contextos locais onde estavam sendo implementadas e acabavam por deixar os países em situação pior do que se encontravam anteriormente (Kenny, Reference Kenny2017; Mungiu-Pippidi, Reference Mungiu-Pippidi2006; Sampson, Reference Sampson, Sousa, Larmour and Hindess2008).
Embora esses estudos tenham exposto as frequentes disjunções entre esforços anticorrupção e o contexto cultural local, o papel das iniciativas e agentes anticorrupção como produtores de cultura recebeu bem menos atenção. Tais iniciativas e agentes frequentemente produzem esquemas e símbolos culturais que podem influenciar o modo como as pessoas enxergam e se posicionam em relação à corrupção, à política e às instituições. Estudiosos da corrupção começam a investigar estes processos a partir de análises sobre comportamento político. Estudos neste sentido, em países tão diversos como a Indonésia, a Costa Rica e a Nigéria (Cheeman & Peiffer, Reference Cheeseman and Peiffer2020a; Cheeseman & Peiffer, Reference Cheeseman and Peiffer2020b; Corbacho et al., Reference Corbacho, Gingerich, Oliveros and Ruiz-as2016; Köbis et al., Reference Kobis, Troost, Brandt and Soraperra2019; Peiffer, Reference Peiffer2018), têm demonstrado que o contato sistemático dos cidadãos com mensagens anticorrupção pode resultar em apatia e não em ativismo – as pessoas sentem que seus governos e comunidades estão tão submersos no problema que nada pode ser feito. Às vezes, isso leva os indivíduos até mesmo a adotarem comportamentos corruptos, como o pagamento de propinas.
Analistas não ignoraram completamente o papel da Lava Jato na (re)produção cultural. Bullock e Stephenson (2020) sugeriram que a Lava Jato “significa uma atitude ou um estado mental [marcados pela] recusa a aceitar a impunidade dos ricos como fato imutável da vida.” Consideram, assim, que “de uma perspectiva positiva, [esse] ‘Espírito da Lava Jato’ – a crença que a corrupção sistêmica não é inevitável e não precisa ser tolerada – representa uma mudança cultural com o potencial de transformar o Brasil”. Dado o caráter jurídico da Lava Jato, esta proposição alimenta antigas esperanças de que o direito e os operadores jurídicos poderiam atuar como vetores de modernização das sociedades, promovendo valores liberais como o respeito ao Estado de Direito (Garth, Reference Garth2014; Gordon, Reference Gordon2010; Halliday et al., Reference Halliday, Karpik and Feeley2007, Reference Halliday, Karpik and Feeley2012; Tyler & Darley, Reference Tyler and Darley2000). Obviamente, essa proposição é objeto de disputa. Autores que examinaram os discursos disseminados por veículos de mídia e atores jurídicos durante a operação argumentam que as mensagens dali emanadas eram de outra natureza, retratando a corrupção como um problema da esquerda (Bello et al., Reference Bello, Capela and Keller2020; Damgaard, Reference Damgaard2019) ou apoiando ideias iliberais que se tornaram centrais à ascensão de Bolsonaro (Carvalho & Palma, Reference Carvalho and Palma2020; de Sa e Silva, Reference de Sa e Silva2020a).
Esses estudos, porém, ainda possuem claras limitações. Eles analisam enquadramentos discursivos que circulam e são transmitidos ao público, mas não a produção desses enquadramentos. Ademais, quando examinam essa transmissão estão centrados no papel de agentes de elite (agentes jurídicos da Lava Jato e a mídia tradicional), ignorando como a transmissão é recebida pelo público em geral. Esta é uma lacuna considerável, já que muito da existência da Lava Jato envolveu interações entre agentes jurídicos e pessoas comuns, devido à ênfase atribuída pelos primeiros à publicidade e ao uso das redes sociais. Que interações ocorreram neste espaço compartilhado? Que mudanças e continuidades em esquemas culturais foram promovidas por tais interações? O que os esquemas culturais emergentes dessas interações ajudam a sustentar – maior integridade na política e nos negócios e observância do Estado de Direito, ou algo menos positivo? O que tudo isso revela, não apenas sobre a Lava Jato e o controle da corrupção, mas sobre como as pessoas moldam a legalidadeFootnote 14 – ou são moldadas por ela – na era digital?
É aqui que desdobramentos recentes dos estudos de consciência jurídica se tornam úteis. Estudiosos da consciência jurídica se basearam no giro cultural/interpretativo nas ciências sociais para revolucionar os estudos de direito e sociedade. Para isso, foi central a ênfase “numa concepção weberiana de ação social (…) incluindo análises sobre os sentidos e comunicação interpretativa de transações sociais” (Silbey, Reference Silbey2005 p. 326). Pesquisadores passaram a olhar para o que o direito representa para as pessoas––isto é, qual o sentido que as pessoas atribuem ao direito em seu dia a dia e o que o recurso ou não ao direito significa para elas. A ambição destes pesquisadores era criar teorias sobre as bases culturais da hegemonia do direitoFootnote 15. Para tanto, indagaram como as pessoas comuns (re)produzem esquemas culturais que, por sua vez, dão sustentação à estrutura duradoura do Estado de Direito (Ewick & Silbey, Reference Ewick and Silbey1998). Seguiu-se a isso uma vasta produção abrangendo temáticas variadas, como mulheres sofrendo assédio sexual nas ruas (Nielsen, Reference Nielsen2000) e no trabalho (Blackstone et al., Reference Blackstone, Uggen and Mcclaughlin2009; Marshall, Reference Marshall2017), minorias sofrendo discriminação no emprego (Albiston, Reference Albiston, Fleury-Steiner and Nielsen2006; Hirsh & Lyons, Reference Hish and Lyons2010), pessoas pobres buscando direitos de assistência social (Cowan, Reference Cowan2004; Merry, Reference Merry1990; Sarat, Reference Sarat1990), imigrantes indocumentados decidindo se devem apresentar pleitos perante agências administrativas (Abrego, Reference Abrego2011), trabalhadores do sexo lidando com abusos (Boittin, Reference Boittin2013) e familiares de pacientes com lesão cerebral enfrentando decisões sobre a vida (Halliday et al., Reference Halliday, Kitzinger and Kitzinger2015). Muitos desses estudos destacaram o papel de forças sociais como gênero, raça e classe, em moldar a forma como os sujeitos vivenciam e atribuem sentido ao direito e a ferramentas jurídicas no enfrentamento de assédio e discriminação, estabelecendo, assim, pontes com a teoria crítica da raça e o feminismo jurídico. Alguns desses estudos também mapearam situações em que movimentos e minorias utilizavam instâncias informais fora dos tribunais para buscar justiça (Rae, Reference Rae2019), incluindo a internet (Gash & Harding, Reference Gash and HARDING2018).
Silbey (Reference Silbey2005) teceu críticas aos estudiosos da consciência jurídica por (1) se limitarem a documentar variação nos pensamentos e atitudes das pessoas em relação ao direito, ignorando suas condições materiais subjacentes, e (2) abandonarem a ambição de utilizar esses pensamentos e atitudes como janelas para teorizar sobre como o direito se sustenta como ordem hegemônica. Silbey afirmou que as pesquisas sobre consciência jurídica haviam “perdido [a conexão com] o social” e que talvez o conceito devesse ser abandonado. No entanto, os estudos sobre consciência jurídica continuaram a crescer. Alguns pesquisadores seguiram investigando as bases culturais da hegemonia do direito; outros perceberam que o conceito já havia se mostrado útil para outros esforços críticos.
Chua e Engel (Reference Chua and Engel2019) identificaram três escolas de pesquisa sobre consciência jurídica, ou seja, três maneiras pelas quais os estudos sobre consciência jurídica jogam luzes críticas sobre a relação direito–sociedade. O estudo de Silbey sobre como pessoas comuns dão suporte ao poder do direito se enquadraria numa escola da hegemonia, mas o conceito também teria ajudado a embasar uma escola da mobilização, que analisa como as compreensões dos direitos podem alimentar ações transformadoras por parte de grupos marginalizados, e uma escola da identidade, que examina como “a consciência jurídica e as identidades surgem e moldam umas às outras” (Chua & Engel, Reference Chua and Engel2019, pp. 337-338). Além disso, Chua e Engel percebem o surgimento da consciência jurídica relacional como um caminho promissor a ser seguido por acadêmicos. A consciência jurídica relacional reconhece que os sentidos que as pessoas atribuem ao direito em suas vidas cotidianas emergem em meio a interações sociais e que tanto os sentidos quanto as interações podem ser coproduzidos. Essa coprodução pode ocorrer em graus diferentes, tanto assim que esses autores falam de um espectro de consciência jurídica relacional. Em uma extremidade desse espectro encontram-se estudos que “consideram a mente do indivíduo como o lócus da consciência jurídica”, tratando “outras pessoas ou forças sociais como variáveis independentes em relação às visões de mundo, percepções e decisões individuais” (Chua & Engel, Reference Chua and Engel2019, p. 346). No meio do espectro estão pesquisas que “mantêm o indivíduo como objeto apropriado de estudo, mas tratam outros indivíduos como cocriadores da consciência, em vez de meras variáveis externas” (347). Na outra extremidade estão estudos que “rejeitam o indivíduo como unidade de análise e (veem) a consciência jurídica como um fenômeno totalmente colaborativo”, no qual “a subjetividade individual (desaparece) completamente nas relações” (347-348).
Estes itinerários de pesquisa (Tabela 1) parecem bastante adequados para estudos sobre plataformas de redes sociais, onde as partes interagem e se tornam cocriadoras de consciência jurídica. Tais estudos são, ademais, absolutamente necessários. Conforme tragicamente revelado pelo escândalo da Cambridge Analytica, há uma integração cada vez maior entre as redes sociais e a vida cotidiana. As plataformas de redes sociais armazenam e disseminam enquadramentos e modelos discursivos que as pessoas utilizam para atribuir sentido aos eventos e processos de suas vidas. Esse assunto, no entanto, tem estado notadamente ausente da produção acadêmica. Levando em conta a comunicação entre agentes jurídicos da Lava Jato e o público no Facebook, este artigo visa preencher esta lacuna e expandir a pesquisa sobre a consciência jurídica relacional, tanto em termos ontológicos quanto em termos metodológicos. Ontologicamente, demonstro que o surgimento das plataformas de redes sociais alterou radicalmente o espaço em que as interações sociais ocorrem e onde a relação entre direito e sociedade se desdobra. Por exemplo, as plataformas oferecem oportunidades sem precedentes para encontros entre agentes jurídicos e pessoas comuns, por meio dos quais o sentido do direito pode ser (re)negociado, com efeitos na vida real. A menos que o uso das redes sociais seja severamente reduzido na sociedade, será de absoluta importância acompanhar tais dinâmicas e seus resultados. Metodologicamente, demonstro que postagens/comentários são fontes valiosas de dados sobre como as transações sociojurídicas nascem e evoluem. A maior parte das pesquisas sobre consciência jurídica – incluindo as pesquisas na perspectiva relacional – têm natureza qualitativa, utilizando entrevistas aprofundadas. Trabalhos recentes têm chamado a atenção para a necessidade de se ampliar este espectro. St-Pierre (Reference St-Pierre2019) sugere que utilizemos documentos jurídicos como portas de entrada para o estudo da consciência jurídica de advogados, argumentando que tais documentos são “repositórios de sentidos que a elite da advocacia presume, constrói, distorce, difunde e sistematiza dentro e fora da profissão” (St-Pierre, Reference St-Pierre2019, p. 333). Ela acrescenta que esses poderosos atores podem ser “inacessíveis ou relutantes” em serem entrevistados; logo, os documentos que produzem devem ser considerados substitutos válidos às entrevistas ou observações. Além disso, os documentos podem “providenciar uma compreensão mais precisa do sucesso de advogados na construção de sentidos técnico-jurídicos e no enquadramento de questões” (St-Pierre, Reference St-Pierre2019, p. 334). Com pesquisas que levem as redes sociais mais a sério como lócus de produção de consciência jurídica relacional, semelhante expansão nas fontes de dados se torna imprescindível. Pesquisadores devem incorporar, de forma urgente, postagens textuais, comentários, vídeos, memes, emojis e repositórios de sentidos similares, típicos das redes sociais. O presente trabalho é um passo inicial nesta direção.
Tabela 1. Itinerários de pesquisa sobre consciência jurídica relacional (com base em Chua e Engel, Reference Chua and Engel2019)
![](https://static.cambridge.org/binary/version/id/urn:cambridge.org:id:binary:20250205085538902-0628:S0023921624000513:S0023921624000513_tab1.png?pub-status=live)
DADOS E MÉTODOS
A pesquisa que dá lastro a este artigo começou no início de 2019, com tentativas de coletar dados sobre postagens/comentários a respeito da Lava Jato no Facebook. Escolhi o Facebook porque o seu uso é bem mais disseminado no Brasil do que o do Twitter, o qual tem uma base de usuários mais elitizada, e no Facebook – diferentemente do WhatsApp – postagens/comentários são, em grande parte, públicos. Obviamente, as postagens/comentários do Facebook não são uma representação perfeita de tudo o que se passa nas redes sociais, sendo necessário cautela ao se extrapolar resultados de pesquisas conduzidas a partir dessa plataforma. Há, no entanto, uma integração crescente entre as plataformas, de modo que o conteúdo do Facebook, Twitter e Instagram pode ser compartilhado via WhatsApp e vice-versa, bastando que alguns poucos usuários assim o façam para que um conteúdo viralize entre plataformas. O foco nas postagens/comentários do Facebook estabeleceu alguns obstáculos à minha coleta de dados. Por conta do escândalo da Cambridge Analytica, o Facebook estava fechando o acesso a dados sobre postagens e usuários para aplicativos de terceiros. Utilizando, porém, uma ferramenta de monitoramento de redes sociais e técnicas de web-scraping Footnote 16, pude localizar e extrair dados iniciais de todas as postagens em páginas públicas do Facebook que incluíam as palavras “lava” e “jato”. Nesses dados estavam incluídos os URLs e as datas das postagens, excertos do conteúdo e informações sobre seu desempenho na rede: quantas curtidas ou reações receberam,Footnote 17 quantas vezes foram compartilhadas e quanto de engajamento geraram.Footnote 18
Embora o ideal fosse estudar a trajetória da Lava Jato nas redes sociais desde 2014, minha ferramenta de monitoramento só foi capaz de recuperar as postagens do Facebook nos últimos 2 anos. Assim, minha base só continha dados de outubro de 2017 a outubro de 2019. No entanto, o período de 2017-2019 teve eventos suficientemente marcantes para que meu conjunto de dados fosse interessante do ponto de vista analítico. Este período incluiu a prisão e condenação de Lula, as eleições presidenciais vencidas por Bolsonaro, a nomeação de Moro no Ministério de Bolsonaro e o escândalo da Vaza Jato. Conforme esses eventos transcorriam, muito se falou sobre Lava Jato nas redes sociais, assim como nas ruas do Brasil.
Inicialmente, minha base de dados continha mais de 220.000 postagens. Com o apoio de assistentes de pesquisa, revisei e limpei essa base. Removemos o material relacionado à Lava Jato no PeruFootnote 19, algumas postagens duplicadas e postagens sem comentários. Restaram-nos 75.000 postagens. Então, extraímos os comentários destas postagens utilizando a ferramenta paga exportcomments.com. Neste estágio, decidi me concentrar no top 1% das postagens (750 postagens), considerando as métricas de engajamento geradas por minha ferramenta de monitoramento. Como algumas postagens vinham sendo excluídas – há certa “mortalidade” nas postagens em redes sociais – extraí dados de 756 postagens. Minha base de dados final incluía todas as informações relacionadas a essas postagens – suas URLs, datas de postagem, conteúdo completo (textual e não-textual; vídeos e imagens foram manualmente baixados e armazenados para análise), páginas de origem, número de curtidas/reações e escores de engajamento. Também faziam parte da base os comentários dessas postagens, num total de quase 3 milhões de trechos textuais, memes e imagens. O Gráfico 1 apresenta a distribuição de frequência das postagens/comentários e seus eventos de fundo mais relevantes.
![](https://static.cambridge.org/binary/version/id/urn:cambridge.org:id:binary:20250205085538902-0628:S0023921624000513:S0023921624000513_fig1.png?pub-status=live)
Gráfico 1. Distribuição de frequência para as postagens com o maior nível de engajamento contendo os termos “lava” e “jato” e os comentários a essas postagens (out 2017 – out 2019). Eventos relevantes neste prazo: (1) Prisão de Lula; (2) Eleição de Bolsonaro, nomeação de Moro ao Ministério da Justiça, discussão no Supremo Tribunal Federal sobre o indulto do ex-Presidente Michel Temer – que substituiu Rousseff e presidiu o país de 2016 a 2018 (informações adicionais abaixo); (3) primeiros meses de Moro como Ministro do governo Bolsonaro, segunda condenação de Lula, breve prisão de Temer na Lava Jato, discussão no STF sobre se alguns casos da Lava Jato deveriam ser julgados por tribunais eleitorais, polêmica sobre destino de recursos recuperados por procuradores da Lava Jato; (4) escândalo da Vaza Jato.
Para fins de produção deste texto, acabei me interessando mais na produção de consciência jurídica conduzida por, ou com a participação de agentes jurídicos – ou seja, a consciência jurídica produzida por meio da interação (virtual) entre estes agentes e o público em geral. Assim, minha análise priorizou postagens dos procuradores da Lava Jato presentes na amostra, quais fossem, Deltan Dallagnol (n=53) e Carlos Lima (n=1). Essas totalizaram 54 postagens e 122,335 comentários. O Gráfico 2 apresenta a distribuição de frequência dessas postagens/comentários e seus eventos de fundo mais relevantes.
![](https://static.cambridge.org/binary/version/id/urn:cambridge.org:id:binary:20250205085538902-0628:S0023921624000513:S0023921624000513_fig2.png?pub-status=live)
Gráfico 2. Distribuição de frequência das postagens com maior nível de engajamento feitas por Dallagnol e Lima e os comentários a estas postagens (out 2017 – out 2019). Eventos/tópicos relevantes influenciando as discussões nesse período: (1) Eleição de Bolsonaro, nomeação de Moro ao Ministério da Justiça, discussão no Supremo Tribunal Federal sobre o indulto do ex-Presidente Michel Temer – que substituiu Rousseff e presidiu o país de 2016-2018 (informações adicionais abaixo); (2) primeiros meses de Moro como Ministro do governo Bolsonaro, segunda condenação de Lula, breve prisão de Temer na Lava Jato, discussão no STF sobre se alguns casos da Lava Jato deveriam ser julgados por tribunais eleitorais, polêmica sobre destino de recursos recuperados por procuradores da Lava Jato; (3) escândalo Vaza Jato.
Minha escolha por analisar procuradores e a presença marcante de Dallagnol em minha amostra – o que torna este texto praticamente um “estudo de uma só pessoa” – suscitam questões teóricas e metodológicas importantes. É certo que conversas sobre a Lava Jato no Facebook ocorreram fora das páginas dos procuradores e de Dallagnol, onde narrativas distintas sobre a operação puderam ser articuladas. Nas 756 postagens de minha base de dados, estavam representadas 181 páginas, incluindo páginas de figuras importantes no PT (e.g., Gleisi Hoffmann, presidente do partido, e Lula da Silva) e de outros críticos da Lava Jato (e.g., Conversa Afiada, um portal de notícias do falecido jornalista Paulo Henrique Amorim). No entanto, estas páginas tinham muito menos alcance e engajamento do que a página de Dallagnol. No âmbito dos meus dados, a página de Dallagnol foi a mais influente neste tema (Gráfico 3) em 2018 e em 2019 (Tabela 2). Lula e outros membros do PT ocuparam posições muito inferiores nestes rankings.
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Gráfico 3. Top 10% (18 de 181) das páginas do Facebook com postagens sobre a Lava Jato de maior engajamento entre 10/2017 e 10/2019. Dallagnol também utilizou uma página com o ID deltandallagnol; computando ambos os IDs, seu resultado neste gráfico totaliza 53.
Tabela 2. Páginas mais representadas nas Top-756 postagens do Facebook contendo os termos “Lava” e “Jato” de janeiro de 2018 a outubro de 2019
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A decisão de examinar as postagens dos procuradores e de Dallagnol é, portanto, justificada pela relevância desses agentes e pelo fato de que, segundo meus dados, eles em geral pautaram as conversas sobre a operação nas redes sociais brasileiras. Ademais, as postagens de procuradores da Lava Jato e do Dallagnol representam um espaço único onde cidadãos e agentes jurídicos puderam interagir e atribuir sentido à corrupção, à anticorrupção e ao Estado de Direito. Analisar o que acontece neste espaço é vital. O que os procuradores disseram, e que respostas receberam? De que maneira essas postagens e comentários se aglutinam na formação de esquemas culturais coproduzidos; sobre o que versam tais esquemas; e que efeitos eles podem ter na sustentação do Estado de Direito, na internet e fora dela? Responder essas perguntas nos permite testar a proposição de que a Lava Jato ajudou a produzir uma cultura de integridade e respeito à lei – e, se essa proposição não puder ser corroborada, a entender qual foi o impacto da operação na cultura político/jurídica do Brasil.
Nas ciências sociais, tem havido crescimento substancial em estudos qualitativos e de metodologia mista utilizando dados de redes sociais. Snelson (Reference Snelson2016) mostra que a análise de conteúdo é a abordagem mais comum nesses estudos. Tal análise de conteúdo pode ser qualitativa, quantitativa ou mista – utilizando ambas essas abordagens. Abordagens quantitativas e qualitativas podem ainda ser utilizadas em paralelo ou de forma sequencial, dependendo dos objetivos do estudo. Este artigo combina ambas as formas de análise de conteúdo. Na frente quantitativa, a análise se deu em duas etapas, com o apoio de especialistas em big data – para todo o conjunto de dados e para cada mês. Primeiro, calculamos frequências para as palavras mais utilizadas nos comentários das postagens de Dallagnol e Lima. Segundo, traçamos redes de palavras que mostram que termos estão mais conectados uns aos outros. Os resultados dessas análises foram aprofundados com leitura e codificação qualitativas de postagens/comentários, considerando comentários que tinham recebido pelo menos uma curtida e que, portanto, tinham alguma visibilidade e ressonância na base. Esses dados foram triangulados com fontes acadêmicas e da mídia sobre a Lava Jato para melhor contextualizar as análises.
Pesquisas que utilizam postagens/comentários do Facebook também suscitam preocupações éticas e jurídicas (Mancosu & Vegetti, Reference Mancosu and Vegetti2020; Salganik, Reference Salganik2019; Zimmer, Reference Zimmer2010). Ainda que as postagens/comentários em páginas públicas do Facebook sejam acessíveis a todos (ao contrário, por exemplo, de mensagens privadas ou grupos privados), fato é que essas pessoas não deram consentimento para a utilização de suas opiniões por pesquisadores. Nas palavras de Zimmer, “apenas porque informações pessoais estão disponíveis de alguma forma em uma rede social, não significa que estejam disponíveis para captura e divulgação para todos” (2010: 323) – e, como os dados das redes sociais são de grande volume, obter o consentimento dos envolvidos é praticamente impossível. Além disso, o acesso a esses dados pode entrar em conflito com os termos de serviço do Facebook, que se tornaram mais restritivos após o escândalo da Cambridge Analytica.
Mancosu e Vegetti (Reference Mancosu and Vegetti2020) argumentam que acessar e baixar postagens/comentários de páginas públicas é legalmente seguro e em geral tolerado pelo Facebook, embora às vezes a empresa tenha adotado medidas contra acadêmicos que assim o fizeram. Além disso, pesquisas que utilizam postagens/comentários são claramente de interesse público e científico. No entanto, as preocupações éticas permanecem. Um problema central é que os autores das postagens/comentários são identificáveis – os leitores podem visitar as postagens, comparar as transcrições com o conteúdo dos comentários e determinar quem são esses autores, o que poderia lhes causar danos (como danos à reputação ou mesmo processos judiciais). Assim, os autores recomendam a adoção de medidas para reduzir o risco de reidentificação do usuário. Nas análises quantitativas, isso é mais fácil de ser alcançado, pois os resultados podem ser apresentados de forma agregada. Mas pesquisadores “podem desejar citar a postagem de um usuário para fornecer evidências qualitativas, o que pode permitir que terceiros procurem o usuário diretamente na plataforma” (Mancosu & Vegetti, Reference Mancosu and Vegetti2020 p. 3). Além disso, revistas podem incentivar ou exigir o compartilhamento dos dados em nome da possível reprodução (Mancosu & Vegetti, Reference Mancosu and Vegetti2020), o que pode colocar em risco a identidade dos usuários.Footnote 20 Neste artigo, utilizo três medidas para reduzir o risco de reidentificação. Primeiro, reporto os resultados de minha análise quantitativa de forma agregada. Segundo, embora na minha análise qualitativa eu faça referência a comentários ou mesmo os transcreva, essas transcrições são anonimizadas. Terceiro, quando forneço contexto para esses comentários, faço apenas referências gerais às postagens, dificultando a localização delas na página de DallagnolFootnote 21.
SENTIDOS COPRODUZIDOS SOBRE OPERADORES DO DIREITO E COMBATE À CORRUPÇÃO: TODA A GLÓRIA AOS AGENTES JURÍDICOS DA LAVA-JATO
A análise de frequência das palavras mais utilizadas nos comentários (Gráfico 4) mostra que, por meio das interações examinadas neste artigo, os usuários do Facebook glorificaram os agentes da Lava Jato. A maior parte dos termos com saliência na base de dados, tais como “parabéns”, “#euapoioalavajato”, “apoio” e “força”, têm conotação celebratória em relação à operação.
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Gráfico 4. Frequência das palavras mais utilizadas nos comentários às postagens no Facebook de Deltan Dallagnol (n = 53) e Carlos Lima (n = 1) entre as 756 postagens de maior engajamento contendo os termos “lava” e “jato” de outubro de 2017 a outubro de 2019.
O sentido de outros termos com alta frequência é, em princípio, menos evidente, mas também possui conotações celebratórias. Por exemplo, os usuários a todo momento festejavam os agentes jurídicos pelo “trabalho” que faziam na Lava Jato, enquanto “Brasil” e “país” volta e meia apareciam quando os usuários elogiavam os agentes da operação por seu patriotismo e seus esforços para transformar o país. A título de ilustração, Dallagnol certa vez estimulou seu público a apoiar candidatos que eram favoráveis a reformas anticorrupção. Um usuário comentouFootnote 22:
Parabéns Dr Deltan pelo seu trabalho maravilhoso, pelo seu esforço e exemplo de brasileiro de bem, colocando sua competência e patriotismo em favor do Brasil….É de brasileiros assim que precisamos para realmente mudar nosso país. E vamos chegar lá; os bons brasileiros são maioria.
Em outra postagem, Dallagnol rejeitou o uso de sua imagem por políticos em eleições. Um usuário comentou:
Hoje escutei suas sempre esclarecedoras palavras na [rádio]. Minha gratidão por esse belíssimo trabalho que faz com grande profissionalismo e amor a nossa pátria. O Brasil precisa de muitos Deltans.
Nenhum outro termo oferece melhor evidência desta glorificação do que “Deus”. Este termo aparece frequentemente na amostra e, no final de 2018, se torna o mais utilizado nos comentários. Às vezes, “Deus” é invocado para representar o combate à corrupção como uma batalha do bem contra o mal. Dallagnol escreveu um post em que dizia que a Vaza Jato foi motivada politicamente. Um usuário comentou:
Deltan,o mal nunca vence o bem,conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, a lava jato não é uma simples operação mas é a libertação das mãos de uma organização criminosa, e que volta dar esperança a um povo que tava desacreditado na justiça,parabéns a todos procuradores, aos juízes, que Deus esteja com vocês
Em outra postagem, ele rejeitou a acusação de que estaria abusando de seus poderes, suscitada no âmbito da Vaza Jato. Um usuário escreveu:
O Brasil está com você. A igreja de Cristo está lhe sustentando em oração. Deus é contigo, assim como foi com Davi que derrotou Golias.
Nesse contexto, os agentes da Lava Jato são muitas vezes caracterizados como enviados de Deus. Em uma postagem onde Dallagnol celebra o sucesso da Lava Jato, um usuário comentou:
Parabéns Deltan ! vocês são ANJOS enviados por DEUS para nos salvar! Vocês são corajosos DEMAIS! Protegendo pessoas que merecem e outros quem NÃO MERECEM! Fico procurando palavras para qualificar o quanto voces estão SENDO nossos HERÓIS! NUNCA vou esquecer tudo que estão fazendo por nós brasileiros! GRATIDÃO infinita por VOCÊS DELTAN! Estamos juntos ! AMAMOS o BRASIL! Vamos VENCER! Deus no comando!
Em outra, em que Dallagnol lamentava que a Lava Jato estaria aparentemente chegando ao fim, um usuário escreveu:
Estamos com você Deltan, mensuramos o tamanho de seu sacrifício e família, bem como as privações e restrições por tal engajamento… portanto saiba, uma nação inteira te respeita e estima, você tem sido um homem de Deus, uma dádiva dos céus para nós!!!!
No entanto, o uso mais comum da palavra “Deus” foi no sentido de comunicar um desejo de que Deus dê força, proteçãoFootnote 23 e até mesmo recompensas à força tarefa da Lava Jato por suas ações. Alguns exemplos:
Admirável este promotor. Determinado, corajoso e competente, assim cm ministro Moro. Estão lutando pelo Brasil, para obtermos um país de respeito, disciplinado e próspero. Parabéns para estes incansáveis brasileiros, q Deus proteja-os (postagem em que Dallagnol relatou sua participação em um evento público).
… Força guerreiro, saiba que seus atos até aqui, com certeza já resultará em melhorias para os mais oprimidos. E Deus com certeza lhe concederá a recompensa merecida pelo seu empenho e dedicação nesta causa (mesma postagem acima).
Parabéns pelo profissionalismo, coragem e persistência em fazer o seu trabalho com dignidade!! Que Deus lhe de forças para nunca desistir, pq nós Brasileiros do bem, estamos com o Sr!! brbr (postagem em que Dallagnol estava rejeitando acusações de viés levantadas no contexto da Vaza Jato).
As atividades de Dallagnol na Internet também ajudaram a alimentar essa glorificação dos agentes jurídicos da Lava Jato. Por exemplo, em plataformas de redes sociais, Dallagnol se descreve como um “discípulo de Jesus”Footnote 24. Quando o STF estava decidindo sobre um pedido de habeas corpus ajuizado por Lula para evitar sua prisão, ele tuitouFootnote 25 que estaria “em jejum, oração e torcendo pelo país”. Nas postagens em minha base de dados, por várias vezes ele utilizou retórica que equiparava agentes da Lava Jato a missionáriosFootnote 26 ou mártires.Footnote 27
Três observações podem ser feitas sobre esses achados. Primeiro, eles apontam para a construção de uma imagem da Lava Jato como empreendimento messiânico e patriótico, levado a cabo por seres humanos extraordinários ou até mesmo entidades divinas, não como um feito institucional. Segundo, essa imagem é mobilizada para proteger a operação dos seus críticos. Se a anticorrupção é uma batalha entre o bem e o mal e o juiz e procurador da Lava Jato são “anjos”, as condutas destes não podem ser questionadas. De fato, quando estourou o escândalo Vaza Jato, Dallagnol fez inúmeras postagens defendendo sua conduta na operação. Alguns usuários do Facebook repreenderam ele e Moro, escrevendo:
A casa caiu parcerio Você entendeu ou quer que eu desenhe.
#Morogate Ninguem está acima da Lei. Nem vocês. Em um país sério esses áudios levariam à renúncia do Moro, aqueda desse governo e a convocação de novas eleições.
Mas estes usuários foram superados em número por outros que comentaram:
Não precisa nem dar satisfação. Estaremos todos com vocês. Vocês são nossa esperança de um Brasil melhor . Força!!!
Deltan Dallagnol nós confiamos em você!!!!! Confiamos no Dr Sérgio Moro!!!!!!!!! Confiamos na Lava Jato!!!!!! Continue o seu trabalho em favor desse País!!!!!!!
Deltan Dallagnol força! As pessoas de bem estão ao lado de vocês! O Brasil precisa que vocês continuem firmes e fortes nesta verdadeira luta da luz contra a escuridão! Que Deus abençoe a todos vocês e também as suas famílias.
Por fim, essa construção cultural dos agentes jurídicos da Lava Jato como indivíduos sobrenaturais ou entidades divinas não ficou restrita ao mundo online. De protestos nas ruasFootnote 28 e capas de revista (Solano, Reference Solano, Rubens and Pucheo2018) a blocos de CarnavalFootnote 29 e a indústria da moda,Footnote 30 tais agentes – em especial Moro – foram representados como heroicos e/ou sacrossantos. Talvez não tenha sido por coincidência que Bolsonaro escolheu os seus símbolos (o “mito”, pronto para lutar contra o crime e a corrupção) e lema de campanha (Brasil acima de tudo, Deus acima de todos). A Lava Jato não criou Bolsonaro, mas parece ter estabelecido as bases culturais que permitiram ao Bolsonarismo florescer.
Sentidos Coproduzidos Sobre o Povo e a Luta Contra a Corrupção: a Construção de uma Sociedade Ativa
As interações virtuais examinadas neste artigo também ensejaram a coprodução de sentidos sobre o papel e o lugar da sociedade na luta contra a corrupção. Comentários contendo a palavra povo, que têm alta frequência nos dados, estão no centro disso e comunicam duas mensagens diferentes. Às vezes, referem-se a uma entidade passiva e sem força, vitimada pela corrupção mas incapaz de reagir. Por exemplo, em uma postagem em que Dallagnol incentiva seus seguidores a apoiarem candidatos que eram favoráveis a reformas anticorrupção, os usuários comentaram:
Espero que em 2018 o povo aprenda a votar,e o que eu espero.
Estamos com vcs do queria saber como trazer o povo para a razão .depois de tudo. Ainda tem muita gente que não acorda permanece na ignorância (mesma postagem).
Porém, em comentários a essa postagem, há também um sentimento compartilhado, que depois ganha ainda mais relevo, de que este mesmo “povo” deveria agir e se tornar um vetor de mudança. Usuários escreveram:
É o povo brasileiro que tem que lutar contra a corrupção. Se um povo não luta para o seu próprio bem e fica esperando que chegue um super herói pra lutar por eles vai esperar sentado. Porque a culpa do Brasil está nessa situação e nossa por isso acorda (mesma postagem).
O Brasil Ainda tem geito só depende de nós tomarmos atitude sim é tem de ser agora o poder emana do povo brasileiro patriotas!!! Obrigado sr DALTON DALGNOL e toda a sua equipe fantástica que está mudando a história do país!! Sempre juntos para o meu Brasil do . (mesma postagem).
Aqui também, verifica-se que essa ativação da sociedade no combate à corrupção foi conscientemente estimulada por Dallagnol. Isso aparece pela primeira vez na base de dados em uma postagem de 2018, na qual o ex-procurador pergunta aos seus seguidores se a Lava Jato mudará o país. E responde:
A Lava jato rompe a impunidade de poderosos e isso é um passo certo em direção ao império da lei, mas… a lava jato sozinha não vai mudar o Brasil. A corrupção sistêmica pode ser comparada ao apodrecimento das maçãs de um barril… se você quer resolver o problema você precisa mudar as condições… que fazem aquelas maçãs apodrecerem.
Ele concluiu, “precisamos avançar para mudanças no ambiente político e empresarial que hoje favorecem a corrupção” e promete uma série de vídeos para iniciar uma conversa “sobre quais as mudanças necessárias e como nós, como sociedade, podemos nos envolver pra romper o círculo vicioso da corrupção brasileira.”
Em diversas ocasiões posteriores, as postagens de Dallagnol convocavam o povo a se envolver na luta contra a corrupção. No entanto, a maneira como ele assim o fez merece ser analisada com cuidado. Em estudo sobre a “gramática política” adotada pelos agentes jurídicos da Lava Jato de 2014 a 2018 – em grande parte baseado em entrevistas à imprensa concedidas pelo mesmo Dallagnol – de Sa e Silva (Reference de Sa e Silva2020a) observou que, inicialmente, esses agentes atribuíam o sucesso da operação às leis e instituições existentes; contudo, mais tarde passaram a ver essas mesmas leis e instituições como obstáculos ao combate à corrupção. Eles então passaram a exigir reformas e a colocar o povo que afirmavam representar contra aqueles que se opunham às mudanças que desejavam (de Sa e Silva, Reference de Sa e Silva2020a, p.106).
Nos dados analisados neste artigo, esse também é o contexto no qual a sociedade é ativada. Muitas das postagens de Dallagnol tinham como alvo o Congresso – que, segundo ele argumentava, deveria mudar para que a causa anticorrupção pudesse prosperar – e estimulavam várias formas de ativismo cívico entre seus seguidores. Em uma postagem, Dallagnol gravou um vídeo no qual argumentava que “as pessoas se sentem impotentes, incapazes”, mas poderiam “dar um salto votando em quem… apoia [suas] medidas anticorrupção”. Em outra postagem, ele comemorou que “pelo menos uma dezena de envolvidos graúdos na Lava Jato perderam o foro privilegiado [nas eleições de 2018]” … “cerca de uma dezena de senadores do movimento Unidos Contra a Corrupção se elegeram” … e “movimentos de renovação apartidários elegeram vários candidatos”. Uma notícia na mídia do final de 2018 sugeriu que políticos derrotados nas eleições para o Congresso estavam planejando fazer lobby por leis visando se proteger de futuras investigações. Dallagnol postou um vídeo mencionando esse artigo e disparou: “mudanças estão acontecendo,” mas “a gente precisa defender a lava jato inclusive contra ataques que estão sendo armados… no Congresso Nacional” e “a gente vai precisar continuar contando com sua ajuda”.
Em 2019, Dallagnol iniciou uma campanha contra a votação secreta nas eleições para a Presidência do Senado, sabendo que isso reduziria a probabilidade de vitória do Senador Renan Calheiros, a quem ele via como um adversário da Lava Jato. Após acalorado debate no plenário do Senado, a votação secreta foi mantida, mas a pressão advinda das redes foi tão intensa que os senadores abriram voluntariamente seus votos, mostrando as cédulas para as câmeras ou publicando-as nas redes sociais. Calheiros foi derrotado e Dallagnol escreveu uma postagem afirmando: “A sensibilidade dos senadores em relação ao voto aberto mostra a importância e a força da mobilização da sociedade”. E acrescentou: “A derrota de Renan Calheiros na eleição representa, ainda, a rejeição pela sociedade e pelo parlamento do exercício da presidência do Senado por alguém investigado pela prática de corrupção na Lava Jato”.
O STF se tornou o mais direto antagonista nas postagens de Dallagnol no Facebook. Onze de suas 53 postagens analisadas aqui se concentram no tribunal ou em alguns de seus ministros. Mais uma vez, as postagens miravam o tribunal e os ministros, mas também chamavam o povo a agir. Por exemplo, no final de 2018, Dallagnol postou um vídeo sobre uma deliberação do STF que ele considerava “uma questão de vida ou morte para a Lava Jato” (os ministros decidiriam se os casos de corrupção envolvendo o uso eleitoral de caixa dois seriam julgados pelos tribunais eleitorais, e não os tribunais federais que julgavam os casos da Lava Jato). Ele disse que “dois Ministros… já deixaram entender que a sua orientação vai ser por definir que todos os crimes devem tramitar em conjunto na justiça eleitoral, o que é muito preocupante.” E concluiu: “vamos torcer novamente pra que o Supremo possa estar do lado da lava jato, do lado da sociedade nessa importante decisão”. Em 2019, quando o STF estava para julgar esse caso, Dallagnol gravou vídeo com o seguinte script:
A gente está aqui perto do prédio do Supremo Tribunal Federal [gira o celular para mostrar o prédio do tribunal]. É que o Supremo Tribunal Federal, naquele prédio ali, vai julgar uma questão no dia 13 de março que… pode acabar com a Lava Jato. (grifo nosso)
Entretanto, como os leitores devem ter notado a partir do Gráfico 4, foi a decisão do STF sobre o decreto de indulto presidencial de 2017, editado pelo então Presidente Michel Temer, que melhor expressou esses confrontos.Footnote 31 Em 2018, o Procurador-Geral da República ajuizou uma ação contra esse decreto e o Ministro Roberto Barroso concedeu uma liminar para suspendê-lo. No final de 2018, o Tribunal começou a julgar o casoFootnote 32. Em 3 dias––e em seu habitual tom alarmista––Dallagnol postou cinco vezes sobre o assunto. Em um deles, escreveu:
URGENTE: Há uma intensa articulação junto ao Supremo para liberar nesta 4ª feira o indulto dado por Temer em 2017, que perdoava 80% da pena dos corruptos, qualquer que fosse seu tamanho…. Esse indulto transforma o trabalho da Lava Jato e as penas de corrupção numa piada. Como antecipado, este parece que será um final de ano difícil para a Lava Jato, que continua precisando - e muito - do seu apoio. Tome posição. Compartilhe!
Noutra oportunidade, ele postou o link para a transmissão da sessão do STF onde o caso seria decididoFootnote 33, e agregou:
Assista ao vivo, agora, ao julgamento pelo STF do Indulto de Temer que pode acabar com a Lava jato e arruinar o esforço da sociedade, nos últimos anos, contra a corrupção.
O engajamento gerado por estas postagens se destaca nos dados. #Indultonao e #Indultonão se tornaram as palavras mais usadas em toda a amostra de comentários analisados neste artigo, depois de “lava” e “jato” (que inevitavelmente apareceriam no topo).
“Fora STF!” Cidadãos Ativos ou Cruzados Contra as Instituições?
Esta ativação da sociedade, por parte de Dallagnol, visando trazê-la para junto da Lava Jato na luta contra a corrupção não foi livre de polêmicas. Muitos viram nela uma contribuição para participação cívica saudável na vida e na política nacionais, além de um aprimoramento da “accountability vertical”; outros a viram como algo estranho às atribuições do Ministério Público e como intrusão problemática do Direito na política. Alguns desses críticos destacaram que a Constituição brasileira proíbe os procuradores de se envolverem em atividades político-partidárias, e a legislação eleitoral brasileira pune autoridades públicas que “abusam de seus poderes” em benefício de candidaturas específicas. As ações de Dallagnol podem ter potencialmente violado essas e outras normas jurídicas. De fato, em setembro de 2020, ele foi punido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) por interferir na eleição da Presidência do Senado, embora isso não tenha afetado sua carreira, pois ele se beneficiou da prescriçãoFootnote 34, Footnote 35. Suas críticas ao STF enfrentaram reações semelhantesFootnote 36. Em agosto de 2018, Dallagnol concedeu uma entrevista de rádio na qual afirmou: “Os três membros de sempre do Supremo Tribunal Federal que tiram tudo de Curitiba [da Vara comandada por Sérgio Moro] e mandam tudo para a Justiça Eleitoral e que dão sempre os habeas corpus, que estão sempre se tornando uma panelinha assim… que mandam uma mensagem muito forte de leniência a favor da corrupção”. O então presidente do STF representou contra Dallagnol por essas declarações; desta vez – e pela primeira vez – o procurador foi efetivamente punidoFootnote 37. Em julho de 2020, Dallagnol enfrentou outra representação, agora advinda do Corregedor do CNMPFootnote 38, por um tuíte em que chamou uma decisão do STF de “casuística”Footnote 39.
Neste artigo, a legalidade, a motivação e o sentido político da ativação da sociedade que Dallagnol buscou desencadear por meio de seu ativismo digital são menos importantes. O que importa é a cultura de (i)legalidade que ela fomenta ou ajuda a reforçar. Uma análise detalhada dos comentários nas postagens de Dallagnol revela os termos dessa cultura. Em resposta à sua chamada para o ativismo cívico contra a corrupção, alguns comentários mostram-se consistentes com ideais de controle democrático das instituições pelos cidadãos. Por exemplo, em meio à campanha de Dallagnol contra o decreto de indulto de Temer e seu apelo para que as pessoas “tomassem posição” e “compartilhassem” sua postagem, um usuário comentou:
Não basta apenas compartilhar. A sociedade precisa se organizar para, caso essas artimanhas venham a tomar corpo, sair às ruas em massa e EXIGIR que aqueles que cometeram crimes paguem por eles. INDULTO NÃO!
No entanto, a maioria dos comentários na amostra possui um tom diferente e inspira bem menos otimismo. Em uma postagem na qual Dallagnol criticou uma decisão do STF, os usuários sugeriram que um levante popular deveria ser organizado para derrubar o tribunal:
Comecem as insubordinações q vcs terão o apoio de 100% da população, se organizem e parem de respeitar essas decisões uai!!! O STF ja perdeu legitimidade na Democracia a muito anos e ninguém faz nada, estão esperando acontecer barbareis? Vcs sao milhares de juizes, promotores, procuradores e desembargadores de 1ª e 2ª instancias contra apenas 11 togados, essa conta nao pode fechar assim nao! STF ta agindo como Davi e vcs como Golias!!! Isto precisa mudar urgente!!
E:
Queria que os brasileiros tivessem o mesmo animo da copa para invadir Brasília, queria ver se juntasse 200 mil pessoas na frente do STF se eles iriam continuar com essa bandalheira. Povo marcado, povo feliz.
Em postagens nas quais Dallagnol comentou julgamentos do STF em relação ao decreto de indulto de Temer, esse sentimento se aprofundou nos dados. Usuários escreveram:
O povo tem que ir p ruas contra esse indulto e contra o STF
STF se tornou o maior inimigo do Brasil #StfVergonha
Demandas por uma investigação contra ministros do STF também apareceram nos comentários. De acordo com um usuário:
O Brasil precisa urgentemente de uma Operação Lava Toga.
Outros sugeriram uma solução ainda mais heterodoxa: intervenção militar e o fechamento do STF:
Ah meu amigo…posso compartilhar, mas só quem pode fazer alguma coisa, e agora mais do que nunca, podem, são os Generais, interditando o STF.
#STFvergonhaNacional#NãoAoIndulto#intervençãoNoSTF#Absurdo#SomosTodos LavaJato#foraSTF#indultoNão#lulaPreso
No início de 2019, essas disposições estavam no topo do repertório de comentários (Gráfico 5), com alta frequência registrada de slogans e hashtags como #foratoffoli (Presidente do STF) e #forastf.
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Gráfico 5. Frequência das palavras mais utilizadas nos comentários às postagens no Facebook de Deltan Dallagnol (n = 53) e Carlos Lima (n = 1) entre as 756 postagens de maior engajamento contendo os termos “lava” e “jato” durante um mês no início de 2019.
Usuários então escreveram:
Congresso precisa colocar em pauta URGENTE, processo de Impeachment STF. (postagem em que Dallagnol adverte sobre os potenciais efeitos da decisão do STF em casos da Lava Jato).
Nós Brasileiros teremos que ir as ruas pedindo impeachment de pelo menos metade dos ministros do STF. No Facebook nada se resolve! (mesma postagem).
Cerca de um ano após a prisão de Lula, grupos foram às ruas nas maiores cidades do Brasil para demonstrar apoio à Lava Jato. O sentimento por trás daquele evento estava articulado nos dados em comentários como:
Todos às ruas dia 07/04. Acompanhem as chamadas. Compartilhem. Convidem amigos. Participem!A força emana do povo.#lavajatofica#stfsai (postagem em que Dallagnol celebrava o sucesso da Lava Jato).
Pessoal estou revoltado também,mas domingo estou nas ruas, vamos mostrar nossa força…#foraSTF (postagem em que Dallagnol lamenta uma decisão do STF pelo potencial efeito em casos da Lava Jato).
E:
A Lava Jato é a esperança do povo brasileiro. Temos muito orgulho de vocês! Gratidão eterna! #SomosTodosLavaJato #EuApoioAlavaJato #ForaGilmarMendes #ForaToffoli #ForaAlexandreDeMoraes #STFVergonhaNacional (postagem em que Dallagnol fala sobre a importância do apoio da sociedade para o sucesso da Lava Jato).
Esses ataques às instituições se assemelham aos realizados posteriormente pelo ex-presidente de extrema direita, Jair BolsonaroFootnote 40, e por outros.Footnote 41 Nos Estados Unidos, eles tiveram consequências trágicas quando, em 6 de janeiro de 2021, respondendo aos apelos do ex-presidente republicano Donald J. Trump para “parar a fraude,” Footnote 42 uma multidão de extrema direita invadiu o Capitólio para impedir a certificação dos resultados eleitorais, causando até mesmo a morte de algumas pessoas.
Os dados deste artigo revelam que, se os agentes jurídicos da Lava Jato não criaram essas disposições, eles podem tê-las alimentado na população brasileira desde meados de 2018, senão antes.Footnote 43 Mensagens vazadas no escândalo da Vaza Jato e na Operação Spoofing indicam que Dallagnol e a força-tarefa trabalhavam em conjunto com movimentos para expor congressistas e ministros do STFFootnote 44. Em 2018, Dallagnol escreveu a seus colegas:
Podemos alimentar os movimentos para direcionarem atenção pra Alexandre de Moraes. Se pegar sem a nossa cara, melhor, pq fico penando em possível efeito contrário em nós querermos colcoar o STF contra a parede. Até postei hj sobre Alexandre de Moraes, e se quiser postar o que quiser manda ver, mas acho que a estratégia de usarmos os movimentos será melhor, se funcionarFootnote 45.
Em 2019 as afinidades entre o bolsonarismo e o lava jatismo eram mais difíceis de serem negadas. Na pauta e na iconografia dos protestos do dia 7 de abril citados acima, era impossível separar o apoio à Lava Jato e a Bolsonaro e a hostilidade ao Congresso e ao STF.Footnote 46 Em junho de 2019, após o escândalo da Vaza Jato, mais protestos aconteceram, os quais foram descritos por um veículo de notícias como sendo “em apoio a Moro e contra o Congresso e o STF”.Footnote 47
CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES
A Lava Jato tem sido, e provavelmente continuará sendo, um tema popular em estudos sobre corrupção/anticorrupção e sobre direito e sociedade. Isso não é sem motivo. A operação utilizou meios não convencionais e teve consequências de grande envergadura para a economia e a política no Brasil e no mundo. Embora a Lava Jato possa ter desvanecido e morrido, sua história não terminará tão cedo. Após a Vaza Jato e a Operação Spoofing, os brasileiros têm sido inundados diariamente com novos dados sobre a operação, e muitas outras fontes de dados ainda aguardam escavação acadêmica para uma compreensão mais definitiva a respeito desta. Enquanto isso, os seus métodos e o seu legado permanecem controvertidos.
Este artigo concentrou-se nas interações entre procuradores da Lava Jato e usuários do Facebook entre 2017 e 2019. Essas interações representaram algo que os procuradores consideravam um pilar da operação (transparência). Utilizando-se de coletivas de imprensa e aparições públicas, bem como postagens no Facebook e no Twitter, os procuradores buscaram envolver o povo em cada uma das etapas do seu trabalho. Com base em análises culturais de corrupção/anticorrupção e em desdobramentos recentes dos estudos sobre consciência jurídica (consciência jurídica relacional), este artigo indagou: Essas interações resultaram no quê? Elas ajudaram a promover um “espírito” cívico e virtuoso que busca acabar com a “impunidade dos poderosos” (Bullock & Stephenson, Reference Bullock and Stepenson2020)? Ou elas produziram algo diferente e talvez mais amargo?
Meus achados claramente respaldam a visão mais pessimista da Lava Jato. Nas interações que estudei, a Lava Jato foi concebida não como uma conquista institucional, mas como um empreendimento divino ou sobrenatural. O povo foi convocado a lutar contra a corrupção, o que se traduziu não em um engajamento saudável em assuntos públicos e na vida nacional, mas em uma cruzada contra as instituições, com ataques virulentos ao Congresso e ao STF. Como tal, a Lava Jato apoiou a coprodução de um esquema cultural que não apenas era contrário ao Estado de Direito, mas também pode ter servido como base para o bolsonarismo.
Este estudo tem implicações tanto para as pesquisas sobre consciência jurídica quanto para as pesquisas sobre anticorrupção. Em primeiro lugar, meus achados convidam à realização de pesquisas que levem a sério o papel das plataformas de redes sociais na alteração e expansão do espaço no qual as relações sociojurídicas se desdobram e se atribui sentido ao direito; e que, por isso mesmo, considerem postagens, comentários e afins como fontes de dados válidas. As redes sociais se tornaram elemento central da vida contemporânea, e acadêmicos e pensadores estão constantemente tentando mapear seu impacto em nosso comportamento individual e arranjos sociais. Nesse processo, é difícil negar o papel das plataformas de redes sociais na produção de nosso tecido cultural. Também é inegável que, em transações diárias, nós – os digitalmente incluídos – tanto baixamos (download) quanto enviamos (upload) elementos para/desse tecido cultural (ou nuvem) para atribuirmos sentido ao que pensamos e fazemosFootnote 48. No julgamento do segundo impeachment de Trump no Senado, seu advogado chamou o processo de “cultura de cancelamento constitucional”, baixando e utilizando um vocabulário (sociojurídico) dessa nuvemFootnote 49. O movimento #metoo pode ser visto como um exemplo de vítimas de abuso sexual fazendo upload de suas queixas na nuvem, ao mesmo tempo em que recriam os termos pelos quais essas queixas podem ser remediadas (Gash & Harding, Reference Gash and HARDING2018).
Tudo isso expande infinitamente as possibilidades de produção da consciência jurídica e a construção social da legalidade, mas não sem riscos. Se as pesquisas sobre consciência jurídica começaram como crítica aos esquemas culturais que sustentam o Estado de Direito, foi porque os estudiosos tinham em mente a degeneração das sociedades modernas em tiranias sem rosto (Arendt, Reference Arendt1972, p. 178; Silbey, Reference Silbey and Feenan2013). No entanto, como Silbey observou em seu ensaio intitulado “After legal consciousness”:
Em 2005, continuamos a viver em gaiolas weberianas, mas o ferro metafórico transformou-se em silício e em ondas eletromagnéticas, e a própria gaiola, propositadamente contra a previsão de Weber, foi reencantada. A tirania agora parece fluir através das conexões eletromagnéticas e de silício entre nossos medos/desejos incitados e os aparatos que prometem nos proteger da realidade, ao mesmo tempo que nos satisfazem com sua imagem. (Silbey, Reference Silbey2005 p. 358).
Nesse contexto, pesquisadores devem se perguntar: como ocorrem os processos de produção da consciência jurídica na era digital? Até que ponto esses processos são moldados pela tecnologia e pelos algoritmos e estão sujeitos não apenas às bolhas de filtro e câmaras de eco (Sunstein, Reference Sunstein2007), mas também aos modelos de negócios das plataformas que, intencionalmente, induzem a divisão e a radicalização?Footnote 50 Como certos atores (os que não têm e os que têm poder) se aproveitam dessas novas circunstâncias estruturais––e como isso pode variar com base em suas agendas, recursos (por exemplo, para promover posts e pagar por bots) e características? As identidades e enquadramentos discursivos são produzidos primeiro online e depois mobilizados offline, ou o contrário? Como o Estado de Direito pode ser fortalecido e aperfeiçoado––ou atacado e minado––por meio de novas formas de interação online e offline, se é que as duas podem ser pensadas de maneira separada? Infelizmente, por limitações metodológicas e éticas, este artigo não conseguiu acessar todos esses componentes do nosso novo social. Por exemplo, pode-se apenas supor que pessoas que seguem os procuradores da Lava Jato e Dallagnol no Facebook têm mais probabilidade de comentarem as postagensFootnote 51 destes e podem compartilhar predisposições contrárias ao Estado de Direito, o que explicaria os resultados que observo. Como é impossível extrair dados dos usuários – e seria antiético fazê-lo –, foi mais difícil chegar a conclusões definitivas sobre essa hipótese. No entanto, o fato de que um Procurador da República que encabeçava uma operação anticorrupção conduzida em nome da lei tenha vindo a atrair este público para a sua página não seria uma interpretação menos perturbadora dos meus achados de pesquisa.
Devido a essas limitações metodológicas e éticas, meu estudo captura apenas parcialmente a coprodução de significados que pretendi analisar. Usando a tipologia de Chua e Engel (Reference Chua and Engel2019), pode-se dizer que este artigo se refere principalmente a um subconjunto específico de pesquisas sobre a consciência jurídica relacional – preocupado com os esquemas culturais que surgem de relações e interações (Tabela 1, coluna “hegemonia”) em um espaço sociojurídico radicalmente alterado pelas plataformas de redes sociais. Ainda não sabemos se esses esquemas representam mais uma agregação de disposições pré-existentes entre Dallagnol e seus seguidores e interlocutores, ou se suas respectivas identidades e atitudes em relação ao Estado de Direito foram, de fato, transformadas ao longo do tempo – e, se sim, como isso aconteceu e o que causou essas transformações entre alguns, mas talvez não entre outros. Pesquisas futuras podem abordar essas questões, por exemplo, acompanhando as interações em tempo real, entrevistando seus participantes e documentando mudanças em seus perfis (sobre o que costumavam postar, sobre o que passaram a postar). Este artigo está apenas dando passos iniciais em uma nova e emergente área de pesquisa sociojurídica que deve ser explorada mais a fundo e em novas e complementares direções. De qualquer forma, é inquestionável que o Facebook tanto facilitou como potencializou essas transações – sejam quais forem –, ajudou a amalgamar os esquemas que delas resultaram e lhes deu um lugar no espaço cultural (Foucault, Reference Foucault1972) compartilhado por muitos, senão por todos os brasileiros que viveram a montanha-russa da Lava Jato.
A despeito dessas limitações, meus achados sugerem a necessidade de pesquisas sobre consciência jurídica relacional que abordem, de forma mais integrada, os temas de identidade, mobilização e hegemonia identificados por Chua e Engel (Reference Chua and Engel2019).Footnote 52 De fato, juntamente com a produção de um esquema cultural, meu estudo indica que identidades emergiram ou foram solidificadas, como o juiz/procurador divino e o cidadão ativo lutando contra a corrupção, as quais, por sua vez, não ficaram limitadas à vida digital, mas deram respaldo à mobilização das pessoas nas ruas e em debates públicos, com ataques ao Congresso e ao STF. A contestação à hegemonia do direito documentada em minha pesquisa ocorre em todos esses três domínios.
No entanto, essa contestação também ocorre de maneiras novas e instigantes. O trabalho paradigmático de Ewick e Silbey (Reference Ewick and Silbey1998, Reference Ewick and Silbey2003) identificou uma forma de contestação (na ocasião, elas utilizaram o termo “resistência”) que era, em última análise, conciliável com o Estado de Direito. Aqueles que, no estudo dessas autoras, produziam ou se utilizavam de um esquema cultural contra-o-direito não rejeitavam o direito; apenas sentiam que este era insensível às suas circunstâncias. Desde então, outros apontaram para casos em que os sujeitos entendem o direito como uma ordem corrupta que não estão dispostos a apoiar (de Sa e Silva, Reference de Sa e Silva2020b; Fritsvold, Reference Frtigsvold2009; Halliday & Morgan, Reference Halliday and Morgan2013; Hertogh, Reference Hertogh2018). Este artigo mostra a importância de se examinarem minuciosamente essas manifestações de detração do direito, especialmente em um momento em que o consenso em torno do Estado de Direito está sendo ameaçado por autocratas em ascensão. Quais são as semelhanças e diferenças nessa detração do direito entre ambientalistas radicais (Fritsvold, Reference Frtigsvold2009; Halliday & Morgan, Reference Halliday and Morgan2013), ativistas antitortura (de Sa e Silva, Reference de Sa e Silva2020b) e as multidões de extrema-direita que invadiram o Capitólio dos EUA ou se manifestaram contra o STF brasileiro? O que explica a rejeição ao direito em seus respectivos mundos culturais, e quais alternativas ao Estado de Direito – desejáveis ou não – poderiam vir a apoiar? Quem tira proveito dessa hostilidade ao direito e quem a promove – e por quê? Quais meios, digitais e outros, estão sendo usados nesses processos?
Por fim, meu estudo sugere que os pesquisadores devem prestar mais atenção às maneiras pelas quais a consciência e a ideologia podem se tornar constitutivas das iniciativas anticorrupção. Talvez por estarem mais orientados à audiência das políticas públicas, a maioria dos estudos sobre anticorrupção parece adotar uma perspectiva instrumental em vez de uma perspectiva constitutiva (Engel, Reference Engel, Bryant and Sarat1998; Sarat & Kearns, Reference Sarat, Kearns, Sarat and Kearns1993). A cultura é abordada nesses estudos ou como uma variável dependente (algo que precisa ser mudado) ou como um obstáculo a uma intervenção externa e benigna – ou pelo menos bem-intencionada. Meus achados indicam que a cultura é socialmente construída e está sendo coproduzida por meio dessas intervenções, e que, nesse contexto, alguns cruzados na luta contra a corrupção podem ser os responsáveis por, tanto quanto as vítimas de, seus próprios fracassos.
Agradecimientos
Esta é uma versão traduzida e adaptada do artigo “Relational legal consciousness and anticorruption: Lava Jato, social media interactions, and the co-production of law’s detraction in Brazil (2017–2019)”, publicado na Law & Society Review, Volume 56, Edição 3 pág. 344–368, vencedor do prêmio de melhor artigo de 2022 da Law & Society Association (LSA). Versão traduzida, revisada e reduzida do texto “Relational legal consciousness and anticorruption: Lava Jato, social media interactions, and the co-production of law’s detraction in Brazil (2017–2019)”, originalmente publicado em: Law Soc Rev. Law and Society Association, Massachusetts, EUA, 56; 344:368. Tradução de Michael López Stewart.
As ideias por trás deste artigo foram apresentadas e discutidas pela primeira vez na Reunião Anual da Law and Society de 2019, na Conferência Anual do Cardiff Centre of Law and Society de 2019 e no Workshop de Direitos Humanos da Yale Law School de 2019. Agradeço a Raquel Pimenta, Mario Schapiro, Ricardo Horta e Francisco Mendes pelos comentários sobre uma versão anterior deste artigo; a Gabrielle Alves e Ana Margarida Martins pelo apoio à pesquisa; a Charles Santana e Tarsio Barreto pelo suporte à análise de big data; e aos três revisores anônimos por seus comentários extremamente construtivos nas versões anteriores. Todos os erros que permanecem no artigo são, naturalmente, de minha inteira responsabilidade.
Translation Acknowledgment
This translation was authored by Michael López Stewart (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, IDP, Brasilia, Brazil) with permission of the original author, Fabio de Sa e Silva. Michael López Stewart takes full responsibility for the accuracy of the translated article.
Fabio de Sa e Silva, LLB, LLM, PhD, é Professor Associado de Estudos Internacionais e Professor Wick Cary de Estudos Brasileiros na Universidade de Oklahoma, no Departamento de Estudos Internacionais e Regionais, onde co-dirige o Centro para Estudos Brasileiros da OU. Ele também é pesquisador afiliado no Center on the Legal Profession da Harvard Law School. Fabio é um acadêmico interdisciplinar que estuda a organização social e o impacto do direito e das práticas jurídicas no Brasil e em perspectiva comparada. Ele co-coordena o Project on Autocratic Legalism, um projeto transnacional que estuda os entrelaçamentos entre o direito e a política antidemocrática. Recentemente, coeditou Global Pro Bono: Causes, Organization, and Contestation com Scott L. Cummings e Louise G. Trubek (Cambridge University Press, 2022).